sexta-feira, 5 de janeiro de 2024

Conquistas de Moraes no STF e na PGR devem acelerar denúncia contra Bolsonaro em 2024



Se em 2023 investigações contra o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) progrediram por obra de Alexandre de Moraes, em 2024 algumas conquistas que o ministro obteve, no Supremo Tribunal Federal e na Procuradoria-Geral da República, deverão acelerar a apresentação de uma ou mais denúncias contra o ex-presidente. A entrada de Flávio Dino no STF, a nomeação de Paulo Gonet para a chefia da PGR e a homologação de um acordo de delação entre a Polícia Federal e o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro Mauro Cid são eventos que tiveram participação direta do ministro e vão interferir no andamento dos casos, até o momento inconclusivos.

As investigações que mais se aprofundaram neste ano envolvem a falsificação do cartão de vacinação de Bolsonaro contra a Covid; a suposta apropriação de joias e relógios presenteados por sauditas em viagens internacionais; o suposto uso de cartão corporativo da Presidência para gastos pessoais e familiares e a alegada suspeita de incitar a multidão que invadiu e depredou as sedes dos Poderes, em Brasília, no dia 8 de janeiro. Ainda estão abertos inquéritos mais antigos, sobre a suposta interferência na PF em 2020; a associação de vacina contra Covid à Aids; e ainda sobre as críticas e dúvidas lançadas pelo ex-presidente em relação às urnas eletrônicas.

Em todos esses casos, a PGR, único órgão que poderia denunciar Bolsonaro perante o STF, descartou a ocorrência de crimes ou ainda não encontrou provas suficientes para acusar formalmente o ex-presidente e, com isso, abrir uma ação penal que o tornaria réu. A maioria das investigações subsiste apenas porque Moraes ainda mantém os inquéritos abertos e, junto com a PF, tenta reunir as provas que seriam necessárias para as imputações.

Nomeado por Bolsonaro em 2019, o antecessor de Gonet na PGR, Augusto Aras, sempre descartou as suspeitas. Após a sua saída, a procuradora-geral interina, Elizeta Ramos, nunca se aprofundou nos casos. O subprocurador Carlos Frederico, que cuidava dos inquéritos relacionados ao 8 de janeiro de 2023, e também dos casos mais recentes, das joias e do cartão de vacina, chegou a dizer que a delação de Mauro Cid, que detalharia esses episódios, era “fraca”, pois não conteria provas – algo inusual para colaborações, em geral, feitas pelo Ministério Público, que exige do delator elementos concretos que possibilitem culpar a pessoa delatada.

No início de dezembro, porém, um ofício enviado por Carlos Frederico a Moraes sinalizou a iminência de uma denúncia. No documento, protocolado no dia 4, o subprocurador classificou como “fundamental” para a denúncia a recuperação de um vídeo, postado nas redes por Bolsonaro no dia 10 de janeiro de 2023, e horas depois apagado por ele mesmo, em que um procurador de Mato Grosso atribuía a vitória eleitoral de Lula ao TSE e ao STF. Seria a “prova” de que, mesmo após os ataques aos Poderes, Bolsonaro teria tentado incitar seus apoiadores a cometer novos crimes contra as instituições.
Gonet na PGR

Com a posse de Gonet na PGR, é esperada uma pressão ainda maior sobre o órgão, principalmente por parte do STF, para denunciar Bolsonaro, justamente por atos que poderiam ser enquadrados como “ataques à democracia”, ou mais especificamente, crimes contra o Estado Democrático de Direito. No quadro pintado por um grupo de delegados da PF que respondem diretamente a Moraes, Bolsonaro teria contribuído para o 8 de janeiro pelo menos desde 2020, com a convocação e participação em manifestações de rua contra o STF; e nas transmissões ao vivo nas redes em que semeou desconfiança em relação às urnas eletrônicas.

Parte dessas acusações já foi aproveitada por Gonet no parecer em que ele defendeu, no Tribunal Superior Eleitoral (onde ele atua desde 2021), a condenação de Bolsonaro à inelegibilidade, em razão da reunião que o ex-presidente fez com embaixadores para levantar dúvidas sobre a transparência, segurança e confiabilidade da votação eletrônica, além da imparcialidade dos ministros nas eleições. Do ponto de vista político, foi mais uma confirmação de que Gonet age e agora tende a agir mais ainda, como procurador-geral, em sintonia com Moraes, principal patrocinador, ao lado de Gilmar Mendes, de sua indicação pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva para o cargo.

Os dois ministros também tiveram influência decisiva sobre Lula para colocar no STF o ministro da Justiça Flávio Dino, que, no cargo, nunca escondeu o ímpeto de criminalizar o “bolsonarismo”. Na Corte, há convicção de que ele será voto certo contra Bolsonaro na análise de uma eventual denúncia. Por ter ascendência sobre a PF, Dino contribuiu para o aprofundamento das investigações enquanto era Ministro da Justiça. A direção-geral da corporação deve continuar com o delegado Andrei Rodrigues, o que deixa aberto um canal informal de contato do novo ministro do STF.

Pelo mesmo motivo, alguns dos atuais ministros do STF também têm interesse em indicar alguém próximo a eles para suceder Dino no Ministério da Justiça – está no guarda-chuva da pasta não só a PF, mas também a Polícia Rodoviária Federal e o Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional (DRCI), órgão que centraliza investigações conjuntas com outros países.

Os dois órgãos também são relevantes nas investigações sobre Bolsonaro. A PRF está sob a lupa de Moraes pela suspeita de que seu gestor anterior, alçado ao comando por Bolsonaro, teria tentado dificultar a chegada de eleitores do Nordeste aos locais de votação no segundo turno da eleição presidencial. Já o DRCI é crucial para obter dos Estados Unidos informações sobre o destino e venda de presentes que Bolsonaro recebeu enquanto presidente e que, segundo Moraes, constituiriam patrimônio público da União.
Defesa de Bolsonaro e eventual aprovação de anistia

Em todos esses casos, a defesa de Bolsonaro tem trabalhado para inocentá-lo. O primeiro argumento é a falta de competência do STF para tocar os processos. isso porque, desde que deixou o mandato presidencial, Bolsonaro não tem mais foro privilegiado. Todas as investigações, portanto, já deveriam ter descido para a primeira instância da Justiça, exatamente como ocorreu com Lula e Michel Temer depois que deixaram a Presidência.

Em relação ao 8 de janeiro, os advogados alegam que Bolsonaro não tem qualquer participação – deixou o Brasil rumo aos Estados Unidos mais de uma semana antes e teria postado o vídeo em 10 de janeiro sob efeito de medicamentos, por engano. O próprio Bolsonaro tem repetido, em discursos e entrevistas, que ele considera a disputa de 2022 “página virada”.

Em relação às joias, a defesa é de que não havia clareza quanto à natureza pública ou privada dos objetos. Quanto aos cartões de vacina, a defesa do ex-presidente atribui tudo a Mauro Cid e a outros ex-auxiliares, que teriam agido sem seu conhecimento.

Em grande medida, as investigações mais recentes sobre Bolsonaro, especialmente aquelas derivadas da delação de Mauro Cid, são mantidas em segredo por Moraes.

Fora dos autos, o ex-presidente e seu entorno apostam em sua força política e popularidade na esperança de evitar uma condenação ou, se essa acontecer, numa anistia que eventualmente seja aprovada no Congresso. A aposta é de que boa parte da população não aceitaria uma sentença injusta e baseada em perseguição política e pressionaria os parlamentares a aprovar uma lei que perdoasse Bolsonaro. O problema é que uma lei assim, além de precisar contar com a maioria da Câmara e Senado durante um governo petista, ainda estaria submetida ao veto de Lula e de uma análise de constitucionalidade pelo STF.

Prelúdio do golpe de 8/1- Ninguém poderá dizer que foi surpreendido



Se o golpe militar é o degrau mais alto que Bolsonaro pretende escalar para não deixar o poder, os demais degraus até que se chegue lá se tornam automaticamente possíveis.

É sobre a naturalização do golpe em curso. Antigamente, golpe se temia, mas anunciado não era. Caso seus sinais se tornassem explícitos, os conspiradores negavam o golpe.

Havia os pregadores do golpe, mas que não participavam diretamente dos seus preparativos. Davam palpites, quase sempre desprezados. E ajudavam a criar o clima para o que viria.

A luz do dia fazia mal à tessitura do golpe, por isso ela avançava à noite e em segredo. Os conspiradores temiam falar ao telefone porque ele poderia estar grampeado pelo governo.

Sim, pelo governo. Golpe era sempre contra o governo de então. De 1930 para cá, só houve um golpe promovido pela situação: o de 1937, sob o comando do presidente Getúlio Vargas.

Vargas chegou à Presidência por meio do que é chamado de Revolução de 30. Derrotado na eleição daquele ano, encabeçou o movimento militar golpista e derrubou o presidente eleito.

Para ficar onde estava, ele deu o golpe de 1937, que instituiu o Estado Novo. Governou até 1945, foi deposto por um golpe, voltou eleito pelo povo em 1950 e matou-se em 1954 para não ser golpeado outra vez.

A história da República brasileira está repleta de tentativas bizarras de golpes que falharam. O suicídio de Vargas com um tiro no coração adiou por 10 anos o golpe que se consumaria em 1964.

O presidente Jânio Quadros protagonizou uma curiosa tentativa de golpe a favor. Eleito com votação estupenda, renunciou seis meses depois e levou com ele a faixa presidencial.

Queria voltar com ela no peito e nos braços do povo para governar com poderes especiais. Tomaram-lhe a faixa tão logo desembarcou em São Paulo, deixando Brasília para trás. Não lhe deram mais.

O tempo passou, mas a tentação do golpe não passou. Agora, os conspiradores estão nem aí para a luz do dia, o telefone que possa estar grampeado, os pregadores que se metem a dar palpites.

O golpe vem sendo alardeado em jornais, rádios, televisão e redes sociais pelo presidente Bolsonaro e os seus comparsas. Há fóruns a respeito, mesas-redondas, enquetes e até data prevista para que ele ocorra.

A dúvida, apenas, é se ele será um golpe preventivo ou reparador, se acontecerá na noite do primeiro turno, se no intervalo entre o primeiro e o segundo, ou se logo depois do segundo turno.

O golpe preventivo evita o anúncio da derrota de Bolsonaro, o reparador repara o estrago de uma derrota. Talvez fosse mais indicado realizar pesquisas para avaliar qual seria a melhor alternativa.

Ao fim e ao ex-capitão, ninguém poderá dizer que foi surpreendido e acusar o governo de falta de transparência. À jabuticaba, coisa nossa, se juntará o golpe cantado em prosa e verso.

quarta-feira, 27 de setembro de 2023

Heleno na CPMI: Moro faz discurso que, na prática, prega golpe de Estado já


Sergio Moro e Augusto Heleno durante depoimento do general à CPMI do 8 de Janeiro. Qual deles fez o discurso mais golpista?

O senador Sergio Moro (União-PR) expôs nesta terça a sua natureza golpista sem meias-palavras. Mais ele do que o general Augusto Heleno, com seu depoimento detestável, defendeu o suposto direito das Forças Armadas à quartelada. Vamos ver.

Moro vai se transformando, com impressionante velocidade, numa das figuras mais detestáveis da política brasileira. Vocês sabem o que penso de Bolsonaro, do bolsonarismo e dos bolsonaristas. Acho que suas postulações são incompatíveis com o pacto civilizatório. Falta-lhes tudo o que faz a militância política instrumento do progresso humano: espírito democrático, informação, projeto, tolerância, empatia, generosidade... Trata-se de uma soma de horrores e de primitivismos. Avalio que Moro — cujo mandato, creio, está com os dias contados — consegue ser pior, mais abjeto, mais desprezível. E a razão é simples: ele finge o que não é para disfarçar o que é. Não chega a ser uma virtude, mas é um dado da realidade: um bolsonarista-raiz, a começar do próprio "modelo", disfarça muito pouco a cepa de que é feito.

O discurso de Moro é mais fingido. Ele simula falar em nome das leis. Tenta — é bem verdade que a gramática não ajuda — fazer com que a antiga experiência de juiz lhe empreste um certo ar de gravidade, como se anunciasse: "Olhem, eu não sou um desses histéricos do PL; um desses moleques irresponsáveis que falam o que dá na telha; eu sou aquele que já se ofereceu como o paladino do combate à corrupção".

Considerem: alguns arruaceiros da quinta série que hoje estão no Congresso mais são o resultado do que a causa de um dano colossal. No que respeita a Moro, a coisa é bem distinta. Ele está na origem de muitos desaires, da razia a que foi submetido o país. Que tenha uma visão de mundo golpista, bem, jamais duvidei disso. Afinal de contas, um juiz que combina procedimentos com o órgão acusador está golpeando o devido processo legal. Sua atuação à frente da 13ª Vara Federal de Curitiba está sob investigação do Conselho Nacional de Justiça. Voltemos a esta terça.

Inconformado com o que considerou "tratamento desrespeitoso" de parlamentares da base do governo com o general Heleno, resolveu sair em sua defesa. Não que ele se preocupe sempre com a honra de um fardado da reserva que senta no banco dos depoentes. Os bolsonaristas tentaram triturar o general Gonçalves Dias, e é claro que o senador-por-enquanto não levantou a voz em sua defesa. De toda sorte, ele pode ter a opinião que quiser. O problema é outro. Moro resolveu brincar com coisa séria e discursou para tentar jogar as Forças Armadas contra o governo Lula. Mais do que isso: ele efetivamente tratou os militares como se fossem um poder moderador. Transcrevo um trecho de sua fala:

"(...) e essa minha percepção refletem um sentimento deste governo Lula, que é de desacreditar as Forças Armadas. É certo que o general não representa as Forças Armadas aqui, mas é um general que pertence a uma instituição, ainda que na condição de general da reserva, e precisaria ser respeitado. No fundo, esse comportamento da base governista reflete o comportamento do governo Lula em relação às Forças Armadas, que as quer desacreditadas, que as quer fragilizadas para que não possam reagir aos arbítrios que nós estamos vendo aqui no nosso dia a dia (...)"

Engatou, na sequência, algumas indagações meramente retóricas, todas elas destinadas a tentar evidenciar o impossível: o governo teria sido leniente com o ataque às respectivas sedes dos Três Poderes.

VAMOS VER

Os maiores avanços no que respeita ao aparelhamento das Forças Armadas se deram justamente nos dois primeiros mandatos de Lula, complementados depois pelo governo Dilma, com a compra dos caças. Neste mandato, não há reclamação de desprestígio que os fardados possam fazer. Muito pelo contrário. Todas as manifestações do presidente e de José Múcio Monteiro, ministro da Defesa, têm sido no sentido de apoio às demandas técnicas apresentadas. E isso é apenas um fato, que está também no Orçamento e na estruturação do PAC.

Como diz o senador-com-prazo-curto, com seu discurso partido ao meio, Heleno não depunha como uma "representante das Forças Armadas", mas como ex-chefe do GSI e, o que era público e notório, como um dos formuladores do governo Bolsonaro. Concentrava as ações de segurança do Estado e de Inteligência. Se há na praça a informação — referendada por um número crescente de fontes e indícios — de que Bolsonaro instigou as Forças Armadas a dar um golpe, é evidente que o general tinha de ser chamado a depor. Dadas concepções e visões de mundo conhecidas — como a de que o Artigo 142 garante aos militares o papel de Poder Moderador —, prenunciava-se um duro embate.

Mas lá estava gente como o próprio Sergio Moro para apoiá-lo — sem contar que Heleno sabe se defender e atacar, como vimos. Disse coisas horríveis, note-se. Ao chamar de "pacíficas" as manifestações dos que ocupavam as imediações do QG do Exército, por exemplo, estava, na prática, a defender uma espécie de direito à pregação de golpe de Estado. E não há. Trata-se de crime. Voltemos a Moro.

GOLPE AGORA

Releiam a sua fala. Além do claro propósito de incitar os militares contra o governo, acusa um esforço deste para afetar a credibilidade das Forças Armadas para que, uma vez fragilizadas, "não possam reagir aos arbítrios que nós estamos vendo aqui no nosso dia a dia (...)". Entenderam?

"Reagir aos arbítrios"? Moro está dizendo, então, que os militares, sem que sejam nem mesmo convocados por um dos Poderes — como dispõe, aliás, o Artigo 142 —, podem agir de moto-próprio, por sua vontade, para pôs fim a supostos "arbítrios que nós estamos vivendo".

As palavras fazem sentido. E a gramática, mesmo a de Moro, fala. Emprega o gerúndio "vivendo" — e, por óbvio, na sua cabeça, "estamos vivendo os arbítrios" agora. Se assim é e se ele atribui aos militares a competência que não têm para interferir na vida pública — e fica claro que está se referindo ao governo Lula —, então só se pode concluir que vê motivos para uma intervenção armada, que também recebe o nome de "golpe de Estado".

E isso, convenham, nem o general Augusto Heleno fez.

domingo, 9 de abril de 2023

Lula evolui da pré-história bolsonarista para Antiguidade do PT em 100 dias



O retrato de um período da história é o resultado da análise de tudo o que sobra para ser desenterrado muitos anos depois. No futuro, quando a arqueologia política fizer suas escavações à procura de sinais que ajudem a entender os primeiros 100 dias do terceiro mandato de Lula, encontrará resquícios de um fenômeno inusitado —um avanço civilizatório obtido a partir de uma virada de página para trás.

Com um pé no passado, Lula descomprimiu o ambiente ao recriar programas sociais que Bolsonaro havia destroçado. Ressuscitou a diplomacia presidencial, reconectando o Brasil com o mundo. Reconciliou o país consigo mesmo ao socorrer os Yanomami. Trocou a precariedade de Pazuellos, Damares, Salles e outros azares pela sobriedade de Nísias, Tebets e Marinas.

Quando puder falar sobre os primeiros dias de Lula 3 sem ser acusada de fascista, a posteridade dirá que os entusiastas do governo dividiram-se em dois grupos. O primeiro se escora em palavras usadas como muros de arrimo do otimismo: vai dar certo, precisa dar certo, tem que dar certo. A segunda banda esgrime contra todos os que ousam apontar os maus presságios uma frase pau-pra-toda-obra: É muito cedo para criticar.

O oco conceitual que desperta entusiasmo e irritação nos adeptos do lulismo dogmático deveria ser preenchido com a célebre metáfora de Hegel sobre a "Coruja de Minerva que só voa quando o crepúsculo chega", significando que o tempo presente só será integralmente compreendido quando já tiver se esgotado. Ou seja: a compreensão só chegará quando já for tarde demais.

Melhor enxergar desde logo os sinais de mau agouro. Os atentados contra a Lei das Estatais, o toma lá sem a contrapartida do da cá, a flacidez legislativa, a ministra com viés miliciano, o ministro manga larga, o criminalista de estimação com um pé no Supremo, o namoro com a ideia de trocar um Aras por outro Aras, a economia gerida a golpes de barriga, o fogo companheiro contra a equipe econômica.

Antes, o petismo ironizava os devotos de Bolsonaro, aconselhando-os a fazer a arminha. Agora, os bolsonaristas agarram-se às incongruências de Lula para instar seus admiradores a fazerem o 'L'. No futuro, ao escavar os escombros dos 100 primeiros dias do reinício da democracia brasileira, os arqueólogos encontrarão, entre ossos e destroços, evidências de que o cinismo foi o mais perto que a política chegou da restauração.

A posteridade talvez pergunte aos seus botões: Que nome dar à era pós-Bolsonaro? A primeira certeza será que o Brasil saiu das trevas. A segunda conclusão será que Lula, escalado para acender a luz, não roçou a Renascença nos primeiros dias. Produziu uma atmosfera de lusco-fusco. Já avançou da pré-história bolsonarista para a Antiguidade petista. Dispõe de três anos e nove meses para chegar a um futuro digno de eternizar Bolsonaro como um político de passado indigno.

quinta-feira, 2 de março de 2023

O legado bolsonarista contra a vacinação infantil



O Movimento Nacional pela Vacinação, lançado na última segunda-feira em Brasília, prioriza inicialmente as doses bivalentes de reforço contra a Covid-19, que potencializam a proteção contra mutações da doença. Foram vacinados o presidente Lula e o vice-presidente Alckmin. É possível imaginar um evento similar capitaneado pelo governo anterior? Entretanto o desafio do atual governo é ainda maior: voltar a vacinar as crianças do país.

Primeiro, o dado fundamental. Para que exista a proteção coletiva contra as doenças, o recomendável é que entre 90% e 95% das crianças estejam imunizadas. Depois, os dados aterrorizantes.

Em 2021, menos de 75% das crianças foram vacinadas contra o sarampo, a caxumba e a rubéola. Contra a paralisia infantil e a tuberculose perto de 70%. Ao redor de 60% dos menores de cinco anos foram vacinadas contra a hepatite B, o tétano, a difteria e a coqueluche.

É um movimento que começou a partir de 2015 que se acentuou nos anos Bolsonaro. Podemos chamar de projeto político? O Ministério da Saúde deixa de investir em campanhas educativas – entre 2017 e 2021, o valor investido pelo governo federal na publicidade da vacinação sofreu um corte de 66%, passando de R$ 97 milhões para R$ 33 milhões. O Zé Gotinha, personagem histórico, desapareceu.

Um presidente que ataca as vacinas contra a Covid, combate todos os imunizantes. Em um debate na CNN um jornalista criticou o apoio de Lula ao PNI, dizendo que um presidente não deveria participar de eventos como esse. Depois de Bolsonaro, foi quase uma obrigação. E temos ainda o gabinete do ódio, alimentando a internet com notícias falsas. Sim, podemos chamar de um projeto político.

Evidentemente que a pandemia, com as famílias em casa e com medo de ir a hospitais e postos de saúde, não é uma variável descartável. Mas houve uma campanha para encorajar a vacinação no período?

De acordo com dados do PNI, a cobertura vacinal teve resultados melhores em 2022. A imunização contra a tuberculose subiu de 74,9% para 83,7%. Lembrando que o ideal é atingir mais de 95% das crianças. O governo condicionou o acesso ao Bolsa Família com a carteira de vacinação em dia. O cronograma do PNI em 2023 foi divulgado. Há muito o que fazer e, talvez até o fim deste mandato, as crianças brasileiras estejam protegidas de doenças quase esquecidas.

MST invade três fazendas de exportadora de celulose na Bahia


Trabalhadores rurais sem terra invadem fazendas de eucalipto da Suzano Celulose na Bahia - Divulgação Coletivo de Comunicação do MST-BA

Integrantes do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) invadiram três fazendas da Suzano Celulose, no extremo sul da Bahia, nos municípios de Mucuri, Teixeira de Freitas e Caravelas.

Segundo Evanildo Costa, membro da direção nacional do MST, a ação ocorreu na madrugada de segunda-feira (27) e envolveu cerca de 1.500 pessoas. A reportagem não conseguiu estimativa da PM sobre o total de sem-terra nas três áreas.

Ele afirmou que o ato tenta pressionar a Suzano a cumprir acordo firmado em 2011, que envolveria a cessão de terras para assentar 600 famílias.

Por nota, a Suzano informou que as propriedades foram danificadas pelos membros do movimento. Além de violarem o direito à propriedade privada, os atos estariam sujeitos à adoção de medidas judiciais para reintegração de posse, diz o comunicado.

"O acordo mediado pelo governo de então não era só com a Suzano, mas com outras duas empresas. Mas a Suzano cedeu uma terra que abriga apenas 200 famílias. Outras 400 estão desamparadas na beira da estrada. Por isso, a decisão de retomar as áreas", disse Costa.

Questionada pela reportagem sobre os detalhes do acordo apontados pelo MST, a empresa não respondeu.

Costa disse que a expectativa do movimento é que a Suzano chame o MST para uma negociação.

Conforme o dirigente, na gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), cerca de 30 fazendas foram alvos de ações pelo movimento na Bahia.

Segundo o movimento, atualmente, na Bahia, há ao menos 220 acampamentos à espera da regularização fundiária por parte do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária).

As ações recentes, ainda segundo a entidade, fazem parte da Jornada das Mulheres e do Abril Vermelho. "As ocupações não foram só nas áreas da Suzano, mas também em alguns perímetros irrigados no norte da Bahia e algumas fazendas particulares", diz Costa.

Em nota, a Suzano reitera "cumprir integralmente as legislações ambientais e trabalhistas aplicáveis às áreas em que mantém atividades, tendo como premissas em suas operações o desenvolvimento sustentável e a geração de valor e renda, reforçando assim seu compromisso com as comunidades locais e com o meio ambiente".

A companhia diz gerar, aproximadamente, 7.000 empregos diretos, mais de 20 mil postos de trabalho indiretos e beneficiar 37 mil pessoas.

Além disso, ainda conforme a nota, por meio de seus projetos sociais, programas e iniciativas na região, a empresa alcançou mais de 52 mil participantes diretos e indiretos, em 82 comunidades e mais cinco sedes municipais.

Por fim, continua o comunicado, a companhia diz ter compromisso por manter um diálogo aberto e transparente, "de maneira amigável e equilibrada" e confiança nas leis e no Estado brasileiro, na busca pela defesa e preservação dos direitos de quem produz.

Uma boa definição de coragem


General Tomás Miguel Miné Ribeiro Paiva

Em fala tornada pública, novo comandante do Exército expôs o mal que o bolsonarismo fez às Forças Armadas e enfatizou o essencial: ‘Coragem é se manter como instituição de Estado’

Em 18 de janeiro, três dias antes de ser nomeado comandante do Exército pelo presidente Lula da Silva, o general Tomás Miguel Miné Ribeiro Paiva fez um discurso de dez minutos no Comando Militar do Sudeste (CMSE), no qual defendeu a democracia, o respeito ao voto e a alternância de poder. “Quando a gente vota, tem de respeitar o resultado da urna”, disse.

Nesta semana, o podcast Roteirices divulgou uma fala do general Paiva, feita no mesmo dia 18 de janeiro, para seus subordinados no CMSE. Ao contrário do que alguns insinuaram, essa fala mais longa – tem cerca de uma hora de duração – é também profundamente democrática e em nada contradiz o discurso feito em público.

“A gente (Forças Armadas) participou da comissão de fiscalização (das eleições). Não aconteceu nada”, disse o general a seus subordinados, em referência às alegadas fraudes. E insistiu que o resultado deveria ser acolhido, ainda que tenha frustrado “a maioria” dos militares, como ele enfatizou. A mensagem é cristalina: as eleições foram limpas e o respeito ao resultado das urnas não poderia depender da concordância pessoal com o candidato vitorioso.

De resto, ao comentar que Jair Bolsonaro era o candidato da preferência da maioria dos militares, o general Tomás fez apenas uma constatação óbvia. Contudo, não faltou quem tirasse a declaração do contexto para fazer parecer que o comandante do Exército exprimia resistência pessoal ao presidente Lula. A leitura do inteiro teor da fala, no entanto, mostra que o general estava justamente alertando que a percepção pessoal de seus subordinados pode não corresponder à realidade do País. Desconstruía, assim, a narrativa bolsonarista da suposta fraude nas urnas. “Todos nós somos da bolha fardada, da bolha militarista, da bolha de direita, conservadora. A maioria de nós é dessa bolha, raramente um de nós frequenta outra bolha”, disse, defendendo que essa circunstância não pode interferir no funcionamento constitucional – ou seja, apartidário – das Forças Armadas.

Faz muito bem, portanto, o Palácio do Planalto em não cair na manobra dos que tentaram usar a divulgação da fala como pretexto para criar atritos e tensões com as Forças Armadas.

O aspecto mais relevante da fala do general Tomás a seus subordinados é a defesa das Forças Armadas como instituição de Estado, e não de governo. O áudio vazado é importante diagnóstico do mal que Jair Bolsonaro causou nos quartéis, com sua incessante tentativa de usar as Forças Armadas para fins político-partidários.

O general Tomás citou, por exemplo, o constrangedor episódio no qual o então presidente Bolsonaro tentou organizar uma motociata partindo da Academia Militar das Agulhas Negras (Aman). O plano só não foi realizado porque os generais “conseguiram convencer o presidente que não era uma coisa adequada ter uma motociata, que é um ato político de apoio ao presidente, dentro da academia militar”.

Além de criticar o desfile de blindados da Marinha em Brasília no dia da votação no Congresso da PEC do Voto Impresso, em 2021, e a tentativa de usar o desfile militar do 7 de Setembro para fins eleitorais, em 2022, o general Tomás lamentou o modo como Jair Bolsonaro tratou o comando das Forças Armadas. “No governo passado, tivemos uma coisa pouco usual que foram as três mudanças de comandante de Força. Passamos pelo general Pujol, depois o general Paulo Sérgio e depois o general Freire Gomes”, relembrou. Todas as mudanças ocorreram depois de desgastes políticos causados por Jair Bolsonaro.

Nada disso faz bem às Forças Armadas. “Política partidária dentro da Força gera desgaste”, disse o general Tomás. O alerta é necessário. Foi um tremendo erro de avaliação achar que “um mau militar” – nas palavras de Ernesto Geisel – poderia ser um bom representante dos interesses dos militares. A caserna não é para fazer política. Coragem não é fazer ameaça, seja de bomba em quartel, seja de golpe de Estado. “Coragem é se manter como instituição de Estado, mesmo que custe alguma coisa de credibilidade e popularidade”, disse o comandante do Exército. Mais constitucional e republicano, impossível.

quarta-feira, 1 de março de 2023

Patriota expulsa do partido vereador que ofendeu baianos


Vereador de Caxias do Sul Sandro Fantinel (Patriota) disse para agricultores não contratarem 'aquela gente lá de cima'

O Patriota decidiu expulsar o vereador Sandro Fantinel do partido após o discurso xenofóbico no plenário da Câmara Municipal de Caxias do Sul para que agricultores e empresas agrícolas contratem trabalhadores argentinos, e não mais “aquela gente lá de cima”.

O parlamentar disse que os baianos “vivem na praia, tocando tambor” e, por isso, “era normal que se fosse ter esse tipo de problema”, em referência aos funcionários de vinícolas resgatados no Rio Grande do Sul em condições análogas à escravidão. Diz o vereador:

— Não contratem mais aquela gente lá de cima. Conversem comigo, vamos criar uma linha e vamos contratar os argentinos. Porque todos os agricultores que têm argentinos trabalhando hoje só batem palma. São limpos, trabalhadores, corretos, cumprem o horário, mantêm a casa limpa e no dia de ir embora ainda agradecem o patrão pelo serviço prestado e pelo dinheiro que receberam.

A direção nacional do Patriota afirmou que o discurso “está maculado por grave desrespeito a princípios e direitos constitucionalmente assegurados à dignidade humana, à igualdade, ao decoro, à ordem, ao trabalho, já que se referem de forma vil a seres humanos tristemente encontrados em situação degradante”.

Em seguinte, o partido decide pela expulsão do vereador:

“Esta situação torna inconciliável sua permanência nas fileiras do Patriota, partido que prima pelo respeito às leis, à vida e à equidade”.

Senadores definem que vão trabalhar apenas três dias por semana e três semanas por mês em Brasília


O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, deu aval para aprovação da semana com jornada reduzida para os senadores Foto: Roque de Sá/Agência Senado

Na primeira reunião após terem emendado o feriado de carnaval, os senadores decidiram se autoconceder semanas reduzidas de trabalho. Com aval do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), foi definido que só serão votados projetos às terças, quartas e quintas-feiras. Segundas e sextas terão sessões não deliberativas, o que significa que os parlamentares não precisarão trabalhar nesses dois dias, pois não será considerado falta.

Os senadores também instituíram o mês de três semanas. Funcionará assim: na última semana do mês, o trabalho será remoto e “com pauta tranquila”. Na prática, o senador só precisará trabalhar nove dias num mês em Brasília. O salário atual dos senadores é R$ 39,2 mil, mas o valor irá saltar para R$ 41,6 mil a partir de abril. O reajuste foi definido no final do ano passado.

O líder do Podemos no Senado, Oriovisto Guimarães (PR), defendeu a medida. “Acho que foi um avanço. Isto vai permitir um maior contato com a base de cada senador, uma semana por mês”, afirmou. Segundo o parlamentar, a decisão foi unânime entre os líderes partidários.

A semana curta costumava ser um hábito no Congresso para que os senadores e deputados pudessem voltar aos seus Estados. A pandemia, contudo, permitiu votações remotas. Mesmo com esse recurso, o privilégio de trabalhar apenas três dias na semana foi mantido.

Na reunião desta terça-feira, 28, os senadores decidiram ainda que às terça e quartas-feiras, o expediente começa só à tarde. O início programado é às 14h, mas votação mesmo só a partir das 16h. Estão liberadas no período da manhã, no entanto, sessões nas comissões temáticas. Os senadores só têm desconto no salário se faltarem nas votações em plenário, sessões que começam às 16h.

Campeão de despesas

Como mostrou o Estadão, o Brasil tem o segundo Congresso mais caro do mundo, em números absolutos. Só o parlamento dos Estados Unidos – a maior economia do mundo – possui orçamento superior. É como se cada um dos 513 deputados e 81 senadores brasileiros custasse pouco mais de US$ 5 milhões por ano, o equivalente a R$ 23,8 milhões na cotação da última sexta-feira. Os dados, aos quais o Estadão teve acesso, são a conclusão de um estudo de pesquisadores das universidades de Iowa e do Sul da Califórnia e da Universidade de Brasília.

O gasto com cada congressista corresponde a 528 vezes a renda média dos brasileiros. O segundo lugar é da Argentina. Lá, cada congressista custa o equivalente a 228 vezes a renda média local. Para chegar a esta conclusão, os pesquisadores compararam o orçamento dos parlamentos e congressos de 33 países, compilados pela União Parlamentar Internacional (IPU, na sigla em inglês), o Banco Mundial e o escritório do FED (o Banco Central dos EUA) em St. Louis (no Estado do Missouri).

Aumento

Na terceira semana de fevereiro, o Senado aumentou o valor da cota parlamentar repassada aos senadores. Em 2023, senadores terão mais 6% no recurso; em 2024, 6% e em 2025, 6,13%. Os representantes do Distrito Federal e Goiás recebem o menor repasse (R$ 22.307,91), enquanto os do Amazonas recebem o maior valor (R$ 46.933,20). Além disso, senadores ganharam um aumento no auxílio-moradia, antes de R$ 5,5 mil para até R$ 9 mil. As ações aconteceram após a reeleição de Pacheco na Casa.

Histórico de interferências de Bolsonaro na Receita vai de dívidas de igrejas a ajuda para defesa de Flávio


Jair Bolsonaro durante evento na Flórida

Em agosto de 2019, José Paulo Ramos Fachada Martins da Silva, então subsecretário-geral da Receita Federal — espécie de número 2 do órgão —, foi exonerado do cargo em meio a pressões de Bolsonaro e seu entorno por mudanças. O Planalto trabalhava, à época, para trocar o delegado fiscal responsável pelo Porto de Itaguaí, no Rio — conhecido por estar na rota do contrabando de armas e drogas e por ficar numa região sob influência de milícias —, e a chefe do Centro de Atendimento ao Contribuinte da Barra da Tijuca, bairro na Zona Oeste da capital fluminense onde o ex-presidente tem residência. As tensões envolviam ainda apurações da Receita que miravam Gilmar Mendes e a esposa de Dias Toffoli, ambos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF).

Dias antes da demissão de Martins da Silva, o auditor José Alex Nóbrega de Oliveira, que comandava há um ano e meio a alfândega do porto, publicou, em um grupo nas redes sociais, uma mensagem na qual afirmava que "forças externas que não coadunam com os objetivos de fiscalização da Receita Federal" estariam interessados em sua saída. Oliveira chegou a afirmar que, ao se negar a ceder às investidas por um nome político no posto, o superintendente da Receita Federal da 7ª Região Fiscal (Rio de Janeiro e Espírito Santo), Mário José Dehon Santiago, também estaria ameaçado.

— Está interferindo? Ora, eu fui (eleito) presidente para interferir mesmo, se é isso que eles querem. Se é para ser um banana ou um poste dentro da Presidência, 'tô' fora — disparou Bolsonaro enquanto as sucessivas polêmicas na Receita enfileiravam-se. O ex-presidente também reclamou de uma suposta "devassa na vida financeira" de familiares no Vale do Ribeira. Irmão do político, Renato Antonio Bolsonaro havia recebido um aviso de cobrança da Receita no valor de R$ 1.682 por conta de débitos relativos a uma empregada doméstica — a situação foi regularizada em seguida.

Com a crise instaurada, funcionários graduados do órgão em todo o país ameaçaram entregar seus cargos, o que inviabilizaria as atividades fiscais. Oliveira foi mantido após a queda de braço, mas uma série de medidas administrativas diminuíram seu poder de fiscalização sobre o Porto de Itaguaí. Ele chegou a receber ameaças, necessitando de escolta. Enfraquecido, acabou substituído em janeiro de 2021 pelo auditor fiscal Gilson Rodrigues de Souza. Já Dehon mudou de função ainda em 2020, passando a chefiar a 6ª Região Fiscal (Minas Gerais).

Secretário especial da Receita Federal e alvo maior da pressão bolsonarista na ocasião, Marcos Cintra foi deposto menos de um mês depois de o imbróglio envolvendo o Porto de Itaguaí vir à tona. Neste caso, porém, a motivação foi outra: ele entrou em atrito com o Planalto ao defender a criação de uma nova CPMF. Cintra acabou sendo candidato a vice-presidente na chapa de Soraya Thronicke (União Brasil) no ano passado.

Em abril de 2020, durante uma reunião no Palácio do Planalto com lideranças evangélicas e o novo secretário especial da Receita Federal, José Barroso Tostes Neto, Bolsonaro cobrou uma solução para as dívidas tributárias milionárias das igrejas. O ex-presidente deu ordens semelhantes outras vezes, com a recomendação expressa de que o assunto fosse resolvido, mas o órgão resistiu às investidas. "É impressionante como a Receita atrapalha o desenvolvimento do Brasil", criticou Bolsonaro em outra ocasião.

Tostes Neto, entretanto, também cairia no fim do ano. Embora tenha deixado o governo "a pedido", para assumir um cargo na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), em Paris, o chefe da Receita resistiu a meses de pressão para que o nome preferido de Flávio Bolsonaro fosse escolhido para comandar a Corregedoria do órgão. O auditor Julio Cesar Vieira Gomes substituiu Neto.

Flávio já havia dado cartas na Receita Federal antes. Entre outubro de 2020 e fevereiro de 2021, cinco servidores foram escalados para apurar se dados fiscais do senador teriam sido repassados ilegalmente ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), dando origem ao caso das rachadinhas. Acusado de manter um esquema de desvio de salários de funcionários de seu gabinete na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj), em caso que acabou arquivado, o filho de Bolsonaro mobilizou o aparato estatal para turbinar sua estratégia de defesa. A pesquisa custou quase R$ 500 mil aos cofres públicos, como revelou à época o jornal Folha de SP.

Em nota, Ricardo Pereira Feitosa negou ter cometido qualquer violação, afirmando ainda que “não vazou dados sigilosos e que sempre atuou no estrito cumprimento do dever legal”. A defesa do servidor pontua também que “sua vida funcional sempre foi reconhecida pela seriedade, zelo, atenção ao interesse público e cumprimento estrito dos deveres legais, trabalhando no combate à prática de ilícitos tributários e exercendo seu poder-dever de atuar na inteligência fiscal”.