O retrato de um período da história é o resultado da análise de tudo o que sobra para ser desenterrado muitos anos depois. No futuro, quando a arqueologia política fizer suas escavações à procura de sinais que ajudem a entender os primeiros 100 dias do terceiro mandato de Lula, encontrará resquícios de um fenômeno inusitado —um avanço civilizatório obtido a partir de uma virada de página para trás.
Com um pé no passado, Lula descomprimiu o ambiente ao recriar programas sociais que Bolsonaro havia destroçado. Ressuscitou a diplomacia presidencial, reconectando o Brasil com o mundo. Reconciliou o país consigo mesmo ao socorrer os Yanomami. Trocou a precariedade de Pazuellos, Damares, Salles e outros azares pela sobriedade de Nísias, Tebets e Marinas.
Quando puder falar sobre os primeiros dias de Lula 3 sem ser acusada de fascista, a posteridade dirá que os entusiastas do governo dividiram-se em dois grupos. O primeiro se escora em palavras usadas como muros de arrimo do otimismo: vai dar certo, precisa dar certo, tem que dar certo. A segunda banda esgrime contra todos os que ousam apontar os maus presságios uma frase pau-pra-toda-obra: É muito cedo para criticar.
O oco conceitual que desperta entusiasmo e irritação nos adeptos do lulismo dogmático deveria ser preenchido com a célebre metáfora de Hegel sobre a "Coruja de Minerva que só voa quando o crepúsculo chega", significando que o tempo presente só será integralmente compreendido quando já tiver se esgotado. Ou seja: a compreensão só chegará quando já for tarde demais.
Melhor enxergar desde logo os sinais de mau agouro. Os atentados contra a Lei das Estatais, o toma lá sem a contrapartida do da cá, a flacidez legislativa, a ministra com viés miliciano, o ministro manga larga, o criminalista de estimação com um pé no Supremo, o namoro com a ideia de trocar um Aras por outro Aras, a economia gerida a golpes de barriga, o fogo companheiro contra a equipe econômica.
Antes, o petismo ironizava os devotos de Bolsonaro, aconselhando-os a fazer a arminha. Agora, os bolsonaristas agarram-se às incongruências de Lula para instar seus admiradores a fazerem o 'L'. No futuro, ao escavar os escombros dos 100 primeiros dias do reinício da democracia brasileira, os arqueólogos encontrarão, entre ossos e destroços, evidências de que o cinismo foi o mais perto que a política chegou da restauração.
A posteridade talvez pergunte aos seus botões: Que nome dar à era pós-Bolsonaro? A primeira certeza será que o Brasil saiu das trevas. A segunda conclusão será que Lula, escalado para acender a luz, não roçou a Renascença nos primeiros dias. Produziu uma atmosfera de lusco-fusco. Já avançou da pré-história bolsonarista para a Antiguidade petista. Dispõe de três anos e nove meses para chegar a um futuro digno de eternizar Bolsonaro como um político de passado indigno.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
O administrador do Blog não se responsabiliza pelos comentários de terceiros.