quinta-feira, 2 de março de 2023

O legado bolsonarista contra a vacinação infantil



O Movimento Nacional pela Vacinação, lançado na última segunda-feira em Brasília, prioriza inicialmente as doses bivalentes de reforço contra a Covid-19, que potencializam a proteção contra mutações da doença. Foram vacinados o presidente Lula e o vice-presidente Alckmin. É possível imaginar um evento similar capitaneado pelo governo anterior? Entretanto o desafio do atual governo é ainda maior: voltar a vacinar as crianças do país.

Primeiro, o dado fundamental. Para que exista a proteção coletiva contra as doenças, o recomendável é que entre 90% e 95% das crianças estejam imunizadas. Depois, os dados aterrorizantes.

Em 2021, menos de 75% das crianças foram vacinadas contra o sarampo, a caxumba e a rubéola. Contra a paralisia infantil e a tuberculose perto de 70%. Ao redor de 60% dos menores de cinco anos foram vacinadas contra a hepatite B, o tétano, a difteria e a coqueluche.

É um movimento que começou a partir de 2015 que se acentuou nos anos Bolsonaro. Podemos chamar de projeto político? O Ministério da Saúde deixa de investir em campanhas educativas – entre 2017 e 2021, o valor investido pelo governo federal na publicidade da vacinação sofreu um corte de 66%, passando de R$ 97 milhões para R$ 33 milhões. O Zé Gotinha, personagem histórico, desapareceu.

Um presidente que ataca as vacinas contra a Covid, combate todos os imunizantes. Em um debate na CNN um jornalista criticou o apoio de Lula ao PNI, dizendo que um presidente não deveria participar de eventos como esse. Depois de Bolsonaro, foi quase uma obrigação. E temos ainda o gabinete do ódio, alimentando a internet com notícias falsas. Sim, podemos chamar de um projeto político.

Evidentemente que a pandemia, com as famílias em casa e com medo de ir a hospitais e postos de saúde, não é uma variável descartável. Mas houve uma campanha para encorajar a vacinação no período?

De acordo com dados do PNI, a cobertura vacinal teve resultados melhores em 2022. A imunização contra a tuberculose subiu de 74,9% para 83,7%. Lembrando que o ideal é atingir mais de 95% das crianças. O governo condicionou o acesso ao Bolsa Família com a carteira de vacinação em dia. O cronograma do PNI em 2023 foi divulgado. Há muito o que fazer e, talvez até o fim deste mandato, as crianças brasileiras estejam protegidas de doenças quase esquecidas.

MST invade três fazendas de exportadora de celulose na Bahia


Trabalhadores rurais sem terra invadem fazendas de eucalipto da Suzano Celulose na Bahia - Divulgação Coletivo de Comunicação do MST-BA

Integrantes do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) invadiram três fazendas da Suzano Celulose, no extremo sul da Bahia, nos municípios de Mucuri, Teixeira de Freitas e Caravelas.

Segundo Evanildo Costa, membro da direção nacional do MST, a ação ocorreu na madrugada de segunda-feira (27) e envolveu cerca de 1.500 pessoas. A reportagem não conseguiu estimativa da PM sobre o total de sem-terra nas três áreas.

Ele afirmou que o ato tenta pressionar a Suzano a cumprir acordo firmado em 2011, que envolveria a cessão de terras para assentar 600 famílias.

Por nota, a Suzano informou que as propriedades foram danificadas pelos membros do movimento. Além de violarem o direito à propriedade privada, os atos estariam sujeitos à adoção de medidas judiciais para reintegração de posse, diz o comunicado.

"O acordo mediado pelo governo de então não era só com a Suzano, mas com outras duas empresas. Mas a Suzano cedeu uma terra que abriga apenas 200 famílias. Outras 400 estão desamparadas na beira da estrada. Por isso, a decisão de retomar as áreas", disse Costa.

Questionada pela reportagem sobre os detalhes do acordo apontados pelo MST, a empresa não respondeu.

Costa disse que a expectativa do movimento é que a Suzano chame o MST para uma negociação.

Conforme o dirigente, na gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), cerca de 30 fazendas foram alvos de ações pelo movimento na Bahia.

Segundo o movimento, atualmente, na Bahia, há ao menos 220 acampamentos à espera da regularização fundiária por parte do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária).

As ações recentes, ainda segundo a entidade, fazem parte da Jornada das Mulheres e do Abril Vermelho. "As ocupações não foram só nas áreas da Suzano, mas também em alguns perímetros irrigados no norte da Bahia e algumas fazendas particulares", diz Costa.

Em nota, a Suzano reitera "cumprir integralmente as legislações ambientais e trabalhistas aplicáveis às áreas em que mantém atividades, tendo como premissas em suas operações o desenvolvimento sustentável e a geração de valor e renda, reforçando assim seu compromisso com as comunidades locais e com o meio ambiente".

A companhia diz gerar, aproximadamente, 7.000 empregos diretos, mais de 20 mil postos de trabalho indiretos e beneficiar 37 mil pessoas.

Além disso, ainda conforme a nota, por meio de seus projetos sociais, programas e iniciativas na região, a empresa alcançou mais de 52 mil participantes diretos e indiretos, em 82 comunidades e mais cinco sedes municipais.

Por fim, continua o comunicado, a companhia diz ter compromisso por manter um diálogo aberto e transparente, "de maneira amigável e equilibrada" e confiança nas leis e no Estado brasileiro, na busca pela defesa e preservação dos direitos de quem produz.

Uma boa definição de coragem


General Tomás Miguel Miné Ribeiro Paiva

Em fala tornada pública, novo comandante do Exército expôs o mal que o bolsonarismo fez às Forças Armadas e enfatizou o essencial: ‘Coragem é se manter como instituição de Estado’

Em 18 de janeiro, três dias antes de ser nomeado comandante do Exército pelo presidente Lula da Silva, o general Tomás Miguel Miné Ribeiro Paiva fez um discurso de dez minutos no Comando Militar do Sudeste (CMSE), no qual defendeu a democracia, o respeito ao voto e a alternância de poder. “Quando a gente vota, tem de respeitar o resultado da urna”, disse.

Nesta semana, o podcast Roteirices divulgou uma fala do general Paiva, feita no mesmo dia 18 de janeiro, para seus subordinados no CMSE. Ao contrário do que alguns insinuaram, essa fala mais longa – tem cerca de uma hora de duração – é também profundamente democrática e em nada contradiz o discurso feito em público.

“A gente (Forças Armadas) participou da comissão de fiscalização (das eleições). Não aconteceu nada”, disse o general a seus subordinados, em referência às alegadas fraudes. E insistiu que o resultado deveria ser acolhido, ainda que tenha frustrado “a maioria” dos militares, como ele enfatizou. A mensagem é cristalina: as eleições foram limpas e o respeito ao resultado das urnas não poderia depender da concordância pessoal com o candidato vitorioso.

De resto, ao comentar que Jair Bolsonaro era o candidato da preferência da maioria dos militares, o general Tomás fez apenas uma constatação óbvia. Contudo, não faltou quem tirasse a declaração do contexto para fazer parecer que o comandante do Exército exprimia resistência pessoal ao presidente Lula. A leitura do inteiro teor da fala, no entanto, mostra que o general estava justamente alertando que a percepção pessoal de seus subordinados pode não corresponder à realidade do País. Desconstruía, assim, a narrativa bolsonarista da suposta fraude nas urnas. “Todos nós somos da bolha fardada, da bolha militarista, da bolha de direita, conservadora. A maioria de nós é dessa bolha, raramente um de nós frequenta outra bolha”, disse, defendendo que essa circunstância não pode interferir no funcionamento constitucional – ou seja, apartidário – das Forças Armadas.

Faz muito bem, portanto, o Palácio do Planalto em não cair na manobra dos que tentaram usar a divulgação da fala como pretexto para criar atritos e tensões com as Forças Armadas.

O aspecto mais relevante da fala do general Tomás a seus subordinados é a defesa das Forças Armadas como instituição de Estado, e não de governo. O áudio vazado é importante diagnóstico do mal que Jair Bolsonaro causou nos quartéis, com sua incessante tentativa de usar as Forças Armadas para fins político-partidários.

O general Tomás citou, por exemplo, o constrangedor episódio no qual o então presidente Bolsonaro tentou organizar uma motociata partindo da Academia Militar das Agulhas Negras (Aman). O plano só não foi realizado porque os generais “conseguiram convencer o presidente que não era uma coisa adequada ter uma motociata, que é um ato político de apoio ao presidente, dentro da academia militar”.

Além de criticar o desfile de blindados da Marinha em Brasília no dia da votação no Congresso da PEC do Voto Impresso, em 2021, e a tentativa de usar o desfile militar do 7 de Setembro para fins eleitorais, em 2022, o general Tomás lamentou o modo como Jair Bolsonaro tratou o comando das Forças Armadas. “No governo passado, tivemos uma coisa pouco usual que foram as três mudanças de comandante de Força. Passamos pelo general Pujol, depois o general Paulo Sérgio e depois o general Freire Gomes”, relembrou. Todas as mudanças ocorreram depois de desgastes políticos causados por Jair Bolsonaro.

Nada disso faz bem às Forças Armadas. “Política partidária dentro da Força gera desgaste”, disse o general Tomás. O alerta é necessário. Foi um tremendo erro de avaliação achar que “um mau militar” – nas palavras de Ernesto Geisel – poderia ser um bom representante dos interesses dos militares. A caserna não é para fazer política. Coragem não é fazer ameaça, seja de bomba em quartel, seja de golpe de Estado. “Coragem é se manter como instituição de Estado, mesmo que custe alguma coisa de credibilidade e popularidade”, disse o comandante do Exército. Mais constitucional e republicano, impossível.

quarta-feira, 1 de março de 2023

Patriota expulsa do partido vereador que ofendeu baianos


Vereador de Caxias do Sul Sandro Fantinel (Patriota) disse para agricultores não contratarem 'aquela gente lá de cima'

O Patriota decidiu expulsar o vereador Sandro Fantinel do partido após o discurso xenofóbico no plenário da Câmara Municipal de Caxias do Sul para que agricultores e empresas agrícolas contratem trabalhadores argentinos, e não mais “aquela gente lá de cima”.

O parlamentar disse que os baianos “vivem na praia, tocando tambor” e, por isso, “era normal que se fosse ter esse tipo de problema”, em referência aos funcionários de vinícolas resgatados no Rio Grande do Sul em condições análogas à escravidão. Diz o vereador:

— Não contratem mais aquela gente lá de cima. Conversem comigo, vamos criar uma linha e vamos contratar os argentinos. Porque todos os agricultores que têm argentinos trabalhando hoje só batem palma. São limpos, trabalhadores, corretos, cumprem o horário, mantêm a casa limpa e no dia de ir embora ainda agradecem o patrão pelo serviço prestado e pelo dinheiro que receberam.

A direção nacional do Patriota afirmou que o discurso “está maculado por grave desrespeito a princípios e direitos constitucionalmente assegurados à dignidade humana, à igualdade, ao decoro, à ordem, ao trabalho, já que se referem de forma vil a seres humanos tristemente encontrados em situação degradante”.

Em seguinte, o partido decide pela expulsão do vereador:

“Esta situação torna inconciliável sua permanência nas fileiras do Patriota, partido que prima pelo respeito às leis, à vida e à equidade”.

Senadores definem que vão trabalhar apenas três dias por semana e três semanas por mês em Brasília


O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, deu aval para aprovação da semana com jornada reduzida para os senadores Foto: Roque de Sá/Agência Senado

Na primeira reunião após terem emendado o feriado de carnaval, os senadores decidiram se autoconceder semanas reduzidas de trabalho. Com aval do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), foi definido que só serão votados projetos às terças, quartas e quintas-feiras. Segundas e sextas terão sessões não deliberativas, o que significa que os parlamentares não precisarão trabalhar nesses dois dias, pois não será considerado falta.

Os senadores também instituíram o mês de três semanas. Funcionará assim: na última semana do mês, o trabalho será remoto e “com pauta tranquila”. Na prática, o senador só precisará trabalhar nove dias num mês em Brasília. O salário atual dos senadores é R$ 39,2 mil, mas o valor irá saltar para R$ 41,6 mil a partir de abril. O reajuste foi definido no final do ano passado.

O líder do Podemos no Senado, Oriovisto Guimarães (PR), defendeu a medida. “Acho que foi um avanço. Isto vai permitir um maior contato com a base de cada senador, uma semana por mês”, afirmou. Segundo o parlamentar, a decisão foi unânime entre os líderes partidários.

A semana curta costumava ser um hábito no Congresso para que os senadores e deputados pudessem voltar aos seus Estados. A pandemia, contudo, permitiu votações remotas. Mesmo com esse recurso, o privilégio de trabalhar apenas três dias na semana foi mantido.

Na reunião desta terça-feira, 28, os senadores decidiram ainda que às terça e quartas-feiras, o expediente começa só à tarde. O início programado é às 14h, mas votação mesmo só a partir das 16h. Estão liberadas no período da manhã, no entanto, sessões nas comissões temáticas. Os senadores só têm desconto no salário se faltarem nas votações em plenário, sessões que começam às 16h.

Campeão de despesas

Como mostrou o Estadão, o Brasil tem o segundo Congresso mais caro do mundo, em números absolutos. Só o parlamento dos Estados Unidos – a maior economia do mundo – possui orçamento superior. É como se cada um dos 513 deputados e 81 senadores brasileiros custasse pouco mais de US$ 5 milhões por ano, o equivalente a R$ 23,8 milhões na cotação da última sexta-feira. Os dados, aos quais o Estadão teve acesso, são a conclusão de um estudo de pesquisadores das universidades de Iowa e do Sul da Califórnia e da Universidade de Brasília.

O gasto com cada congressista corresponde a 528 vezes a renda média dos brasileiros. O segundo lugar é da Argentina. Lá, cada congressista custa o equivalente a 228 vezes a renda média local. Para chegar a esta conclusão, os pesquisadores compararam o orçamento dos parlamentos e congressos de 33 países, compilados pela União Parlamentar Internacional (IPU, na sigla em inglês), o Banco Mundial e o escritório do FED (o Banco Central dos EUA) em St. Louis (no Estado do Missouri).

Aumento

Na terceira semana de fevereiro, o Senado aumentou o valor da cota parlamentar repassada aos senadores. Em 2023, senadores terão mais 6% no recurso; em 2024, 6% e em 2025, 6,13%. Os representantes do Distrito Federal e Goiás recebem o menor repasse (R$ 22.307,91), enquanto os do Amazonas recebem o maior valor (R$ 46.933,20). Além disso, senadores ganharam um aumento no auxílio-moradia, antes de R$ 5,5 mil para até R$ 9 mil. As ações aconteceram após a reeleição de Pacheco na Casa.

Histórico de interferências de Bolsonaro na Receita vai de dívidas de igrejas a ajuda para defesa de Flávio


Jair Bolsonaro durante evento na Flórida

Em agosto de 2019, José Paulo Ramos Fachada Martins da Silva, então subsecretário-geral da Receita Federal — espécie de número 2 do órgão —, foi exonerado do cargo em meio a pressões de Bolsonaro e seu entorno por mudanças. O Planalto trabalhava, à época, para trocar o delegado fiscal responsável pelo Porto de Itaguaí, no Rio — conhecido por estar na rota do contrabando de armas e drogas e por ficar numa região sob influência de milícias —, e a chefe do Centro de Atendimento ao Contribuinte da Barra da Tijuca, bairro na Zona Oeste da capital fluminense onde o ex-presidente tem residência. As tensões envolviam ainda apurações da Receita que miravam Gilmar Mendes e a esposa de Dias Toffoli, ambos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF).

Dias antes da demissão de Martins da Silva, o auditor José Alex Nóbrega de Oliveira, que comandava há um ano e meio a alfândega do porto, publicou, em um grupo nas redes sociais, uma mensagem na qual afirmava que "forças externas que não coadunam com os objetivos de fiscalização da Receita Federal" estariam interessados em sua saída. Oliveira chegou a afirmar que, ao se negar a ceder às investidas por um nome político no posto, o superintendente da Receita Federal da 7ª Região Fiscal (Rio de Janeiro e Espírito Santo), Mário José Dehon Santiago, também estaria ameaçado.

— Está interferindo? Ora, eu fui (eleito) presidente para interferir mesmo, se é isso que eles querem. Se é para ser um banana ou um poste dentro da Presidência, 'tô' fora — disparou Bolsonaro enquanto as sucessivas polêmicas na Receita enfileiravam-se. O ex-presidente também reclamou de uma suposta "devassa na vida financeira" de familiares no Vale do Ribeira. Irmão do político, Renato Antonio Bolsonaro havia recebido um aviso de cobrança da Receita no valor de R$ 1.682 por conta de débitos relativos a uma empregada doméstica — a situação foi regularizada em seguida.

Com a crise instaurada, funcionários graduados do órgão em todo o país ameaçaram entregar seus cargos, o que inviabilizaria as atividades fiscais. Oliveira foi mantido após a queda de braço, mas uma série de medidas administrativas diminuíram seu poder de fiscalização sobre o Porto de Itaguaí. Ele chegou a receber ameaças, necessitando de escolta. Enfraquecido, acabou substituído em janeiro de 2021 pelo auditor fiscal Gilson Rodrigues de Souza. Já Dehon mudou de função ainda em 2020, passando a chefiar a 6ª Região Fiscal (Minas Gerais).

Secretário especial da Receita Federal e alvo maior da pressão bolsonarista na ocasião, Marcos Cintra foi deposto menos de um mês depois de o imbróglio envolvendo o Porto de Itaguaí vir à tona. Neste caso, porém, a motivação foi outra: ele entrou em atrito com o Planalto ao defender a criação de uma nova CPMF. Cintra acabou sendo candidato a vice-presidente na chapa de Soraya Thronicke (União Brasil) no ano passado.

Em abril de 2020, durante uma reunião no Palácio do Planalto com lideranças evangélicas e o novo secretário especial da Receita Federal, José Barroso Tostes Neto, Bolsonaro cobrou uma solução para as dívidas tributárias milionárias das igrejas. O ex-presidente deu ordens semelhantes outras vezes, com a recomendação expressa de que o assunto fosse resolvido, mas o órgão resistiu às investidas. "É impressionante como a Receita atrapalha o desenvolvimento do Brasil", criticou Bolsonaro em outra ocasião.

Tostes Neto, entretanto, também cairia no fim do ano. Embora tenha deixado o governo "a pedido", para assumir um cargo na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), em Paris, o chefe da Receita resistiu a meses de pressão para que o nome preferido de Flávio Bolsonaro fosse escolhido para comandar a Corregedoria do órgão. O auditor Julio Cesar Vieira Gomes substituiu Neto.

Flávio já havia dado cartas na Receita Federal antes. Entre outubro de 2020 e fevereiro de 2021, cinco servidores foram escalados para apurar se dados fiscais do senador teriam sido repassados ilegalmente ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), dando origem ao caso das rachadinhas. Acusado de manter um esquema de desvio de salários de funcionários de seu gabinete na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj), em caso que acabou arquivado, o filho de Bolsonaro mobilizou o aparato estatal para turbinar sua estratégia de defesa. A pesquisa custou quase R$ 500 mil aos cofres públicos, como revelou à época o jornal Folha de SP.

Em nota, Ricardo Pereira Feitosa negou ter cometido qualquer violação, afirmando ainda que “não vazou dados sigilosos e que sempre atuou no estrito cumprimento do dever legal”. A defesa do servidor pontua também que “sua vida funcional sempre foi reconhecida pela seriedade, zelo, atenção ao interesse público e cumprimento estrito dos deveres legais, trabalhando no combate à prática de ilícitos tributários e exercendo seu poder-dever de atuar na inteligência fiscal”.

Militares que atacaram democracia queriam ser julgados pelos próprios chefes


Vidraça do Palácio do Planalto depredada por golpistas no 8 de Janeiro

O ministro Alexandre de Moraes decidiu que os militares envolvidos no 8 de Janeiro responderão por seus atos na Justiça comum. A Polícia Federal identificou dezenas de fardados entre os criminosos que depredaram ou deixaram depredar as sedes dos Três Poderes. Depois de atentar contra a democracia, eles reivindicavam o privilégio de serem julgados por seus pares.

Questionado pela PF, o ministro do Supremo esclareceu que a Justiça Militar julga “crimes militares”, e não “crimes de militares”. Como as acusações não dizem respeito a assuntos internos da caserna, oficiais e praças terão que se acomodar no banco dos réus ao lado de paisanos. Parece óbvio, mas a distinção já foi mais clara na legislação brasileira.

Em 2017, o então presidente Michel Temer sancionou uma lei que ampliou o alcance da Justiça castrense. O texto ressuscitou uma blindagem criada na ditadura para proteger militares acusados de atentar contra a vida de civis. A mudança foi festejada pelas Forças Armadas, que haviam pressionado o Congresso a aprová-la.

A impunidade tem sido regra em processos contra militares envolvidos em violações de direitos humanos. Os casos se avolumaram com o aumento das operações de GLO (garantia da lei e da ordem), em que soldados assumem funções de polícia sem treinamento para atuar fora dos quartéis.

Desde 2013, a Procuradoria-Geral da República pede que o Supremo restrinja o alcance da Justiça Militar em crimes contra a vida de civis. O tribunal cozinha o caso há quase uma década. Voltou a suspender o julgamento há duas semanas, após pedido de vista do ministro Ricardo Lewandowski.

Os militares nunca fizeram questão de disfarçar os motivos do lobby pelo foro especial. Em 2017, o general Eduardo Villas Bôas deixou claro que a ideia era blindar os soldados do alcance da Justiça. “Como comandante, tenho o dever de protegê-los. A legislação precisa ser revista”, disse, em tom imperativo, enquanto o Congresso ainda debatia a mudança na lei.

No 8 de Janeiro, seu sucessor no Forte Apache radicalizaria a defesa do corporativismo. Horas depois dos ataques, o general Júlio Cesar de Arruda ordenou que tanques bloqueassem as entradas do acampamento bolsonarista. O objetivo era impedir a polícia de prender criminosos em flagrante.

CPI vira tramoia golpista. Investigado quer investigar? Tem rato na tuba



Como? Mobilização de governistas, sobretudo de bolsonaristas fanáticos, em favor de uma CPI ou CPMI (a comissão mista) para investigar os atos golpistas? É claro que tem gato — ou ratos — na tuba, não é mesmo?

Vamos ver. Logo depois do ataque, que recorreu a métodos terroristas, a senadora Soraya Tronicke (União-MS) começou a colher assinaturas para uma CPI no Senado. Alguns governistas assinaram. Soraya, diga-se, entrou com um Mandado de Segurança no Supremo, cujo relator é Gilmar Mendes, pedindo uma liminar para obrigar Rodrigo Pacheco (PSD-MG), o presidente da Casa, a instalar a comissão imediatamente. O ministro pediu informações à Mesa da Casa, mas não concedeu a cautelar.

Não custa lembrar: o Parágrafo 3º do Artigo 58 da Constituição aponta três condições para a instalação de uma comissão: ao menos um terço das assinaturas de parlamentares, fato determinado e prazo de funcionamento. Transcrevo:
"§ 3º As comissões parlamentares de inquérito, que terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, além de outros previstos nos regimentos das respectivas Casas, serão criadas pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, em conjunto ou separadamente, mediante requerimento de um terço de seus membros, para a apuração de fato determinado e por prazo certo, sendo suas conclusões, se for o caso, encaminhadas ao Ministério Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores."

A questão: existe fato determinado? Já chego lá.

A base bolsonarista no Congresso, incluindo alguns fanáticos que flertaram abertamente com a patuscada violenta, resolveu abraçar a ideia da CPI. Já no dia 9, começou a circular no esgoto da extrema-direita a falácia de que a violência teria sido patrocinada por grupos de esquerda infiltrados e que o governo Lula teria feito corpo mole para, ora vejam!, transformar em vilãs aquelas boas pessoas que só queriam mesmo um golpe de estado, nada mais.

E eis que vem à luz um novo pedido, este de CPMI — isto é, de CPI mista, com Senado e Câmara. Traz 189 assinaturas de deputados e 33 de senadores, todos identificados com a oposição ao atual governo. Quem protocolou o requerimento é o deputado André Fernandes (PL-CE), que, pasmem!, é personagem de um dos inquéritos abertos no STF por envolvimento com os crimes de 8 de janeiro.

Vocês entenderam direito: aquele que é alvo da Justiça por colaborar com a barbárie se oferece como um militante contra a... a barbárie!!! E que se note: no seu caso, o pedido de apuração foi feito pela própria Procuradoria Geral da República, que anexou um vídeo em que este senhor convocava um ato contra o presidente Lula para o próprio dia 8 de janeiro. Após a depredação, ele publicou a imagem com uma porta de armário com o nome do ministro Alexandre de Moraes. A PGR apontou incitação ao crime, além de uma provocação da prática de abolição violenta do estado democrático de direito.

PALANQUE PARA O CRIME
É claro que falta saber muita coisa. Ocorre que Supremo, Ministério Público Federal e Polícia Federal estão fazendo o seu trabalho. A situação em nada se assemelha à CPI da Covid, quando a omissão do governo federal era escancarada, diante de uma montanha de cadáveres.

Os bolsonaristas estão numa cruzada para tentar inverter o ônus da responsabilidade pelo espetáculo violento e grotesco. Não querem apurar coisa nenhuma. O objetivo, evidente a esta altura, é responsabilizar o governo Lula por atos que eles próprios apoiaram ou patrocinaram, tentando tumultuar o trabalho do Supremo.

O próprio André Fernandes, o que publicou a imagem da porta do armário da sala de Moraes, não esconde. No Twitter, escreveu:
"Acabamos de protocolar o requerimento da CPMI do 8 de janeiro com 189 assinaturas na Câmara dos Deputados e 33 no Senado Federal. Mais de 1/3 do Congresso Nacional quer esta comissão para investigar todos os atos de ação e omissão ocorridos no último 8 de janeiro em Brasília".

Eis aí: quem teria se omitido, não é mesmo?, quando este senhor incentivava os atos golpistas e publicava em suas redes o produto do crime?

Mendes pode conceder a liminar para que as raposas zelem por seus pares, pode negar a cautelar ou submetê-la a plenário. Vamos ver. Tendo a achar que a decisão caberá mesmo ao presidente do Senado e do Congresso, Rodrigo Pacheco. Que tenha prudência. Não se trata de ilação, mas de fato: gente flagrada com a boca na botija decidiu se colocar como guardiã da lei e da ordem. Faz sentido?

A ilegalidade me parece patente. Não é uma comparação de conteúdos e de personagens, mas de estruturas: se chefes do PCC ou das milícias pedissem uma cruzada contra o crime organizado, é certo que haveria gato na tuba. Ou ratos.