Como foi bom para o Brasil ter segundo turno
Durou uma eternidade. Foram quatro semanas no calendário oficial. Mas, na folhinha emocional, cada dia trouxe uma alegria ou, nas palavras de Cármen Lúcia, uma agrura. Entre o primeiro e o segundo turnos da eleição mais importante desde a redemocratização, o país amadureceu, sim. A expressão de voto se tornou mais convicta para muitos. Mais reveladora do país que cada um quer para si, para os filhos e netos.
Mais claras se tornaram, no segundo turno, as plataformas de cada um. Pelos apoios que conseguiram atrair – ou não. Pelas concessões que estiveram dispostos a fazer – ou não. Pelo descarrilamento da economia, já, agora, após a gastança bilionária para comprar a consciência dos eleitores. Pelas mulheres mais visíveis que cerraram fileiras em torno de um. E de outro. Do lado de Lula, Simone Tebet e Marina Silva. Do lado de Bolsonaro, Michelle e Damares Alves. O Brasil continua dividido sim, mas sabe melhor agora em quem está votando.
O nojento pintou-um-clima com as meninas venezuelanas, que o presidente motoqueiro confundiu como prostitutas por estarem se arrumando pela manhã. A asquerosa denúncia sem provas de Damares, a delirante, sobre tráfico sexual de crianças. É incrível como o sexo ocupa as mentes distorcidas de Bolsonaro e Damares. Nada disso interessa às meninas, moças e mulheres que querem estudar, trabalhar, ganhar o mesmo que homens, querem se vestir como bem entenderem, não morrer assassinadas por terminar uma relação.
Simone Tebet foi a revelação do segundo turno. Articulada, apaixonada, patriota. Suas falas nos palanques em prol do Brasil. Ela veio para ficar. Marina deu o tom da nova amizade: “Prestem atenção! Duas mulheres, uma da Amazônia, outra do Mato Grosso. Uma mulher católica, uma evangélica. Uma mulher branca, uma preta. Isso não nos separa, isso nos une, e é o Brasil unido que nós queremos ver”.
Todos enxergamos, com mais nitidez, quem vota em Lula e quem vota em Bolsonaro e quais são suas prioridades na vida. Eleitores entenderam, enfim, quem pagará a conta dos auxílios e subsídios oportunistas de última hora. Foi Paulo Guedes quem revelou. É o salário mínimo. São as aposentadorias. Nada de reajuste pela inflação. Conseguimos até saber, pela campanha bolsonarista, que estão ameaçadas as deduções no imposto de renda sobre gastos com ensino e saúde.
O segundo turno revelou a cara do terror de extrema-direita. Vimos aonde pode nos levar o despejo de armas pesadas entre civis. Bolsonaro não criticou a resistência de Roberto Jefferson a um mandado judicial de prisão. Bolsonaro não condenou o desrespeito de seu aliado às condições de prisão domiciliar: não entrar em redes sociais nem dar entrevistas. Bolsonaro só repudiou as ofensas de Jefferson – “vagabunda e bruxa” – depois que ele feriu policiais federais com fuzil e granadas. Não o comoveu a ministra ser alvo. Mas os policiais, sim.
Queremos este Brasil grosseiro? Caos, assassinatos políticos, brigas até em igrejas? É insustentável esse sobressalto até aos domingos e em festas religiosas. No segundo turno, Lula passou a vestir branco. De paz. Isso não significa que não haja petistas radicais, extremistas e intolerantes. Isso quer dizer que o candidato não deseja ser identificado com eles. E promete uma presidência para muito além de seu partido.
Quem está cheio de ódio e bala na agulha pode não acreditar. Mas a frente ampla que se formou, passando por cima de divergências, acredita. Foi quase um movimento espontâneo, de artistas, intelectuais, religiosos, economistas, empresários de vários cantos do espectro político. Que se uniram para declarar voto num único candidato. Esse foi o maior fenômeno de outubro de 2022. Inesperado. A maior frente ampla desde Tancredo Neves.
Como diz um texto do escritor e roteirista Antonio Prata, lido pela atriz Júlia Lemmertz em vídeo que você pode conferir aqui, ao fim de minha coluna. “Quem já imaginou João Amoedo e Mano Brown declarando voto no mesmo candidato? Esse bando de gente se uniu justamente pra garantir o direito de continuar discordando. Nos unimos por sermos conservadores. Queríamos conservar a Amazônia. Conservar o SUS. Queríamos conservar as instituições e o estado de direito”. Como foi bom esperar o segundo turno.
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