segunda-feira, 24 de outubro de 2022

E Bolsonaro venceu (Editorial do Estadão)



A exemplo do que ocorreu na disputa presidencial de 2002, o petista Lula da Silva se viu novamente obrigado a apresentar uma carta pública para debelar resistências à sua candidatura e criar um ambiente de confiança diante da perspectiva de sua vitória no próximo dia 30. Mas a diferença entre os dois casos é gritante: se há 20 anos Lula teve que se comprometer com a estabilidade econômica, um tema que interessava a todo o País, agora o petista teve que jurar, numa Carta Compromisso com Evangélicos e Evangélicas, que não pretende fechar igrejas nem perseguir cristãos, como o acusa o presidente Jair Bolsonaro.

Trata-se de um assunto totalmente fabricado pelo bolsonarismo, sem qualquer conexão com a realidade nem, muito menos, com o interesse nacional. Ainda assim, o debate eleitoral, que deveria estar voltado para a discussão dos reais problemas do País, foi capturado por essa falsa polêmica, graças ao terrorismo religioso promovido por pastores evangélicos alinhados a Bolsonaro.

Assim, ainda que perca a eleição do próximo dia 30, Bolsonaro pode se considerar um vitorioso: degradou miseravelmente o debate público, conduzindo-o para o campo da desinformação sistemática e do vale-tudo, onde o bolsonarismo joga em casa. Ungido por sua formidável máquina de agitação e propaganda como o “messias” que salvará os cristãos da imoralidade esquerdista, Bolsonaro foi dispensado de explicar os inúmeros erros de seu governo e de dizer o que pretende fazer nos próximos quatro anos. Ao tentar manter os eleitores em transe místico, esse falso profeta escapou do julgamento moral sobre sua criminosa transformação do Estado brasileiro em máquina a serviço de seus interesses eleitorais.

Ao contrário do que a litania bolsonarista pretende fazer supor, no entanto, o apocalipse não está próximo, e há um país com muitos problemas a ser governado. Comparar o Brasil de 2002 ao Brasil de 2022 é reconhecer que o País mudou muito e, ao mesmo tempo, continua essencialmente o mesmo. Os desafios econômicos e sociais são quase idênticos há 20 anos, e incluem a necessidade de reformas estruturantes, políticas sociais consistentes e o equilíbrio fiscal como condições para o crescimento. Nenhum desses temas, no entanto, foi discutido com profundidade durante a campanha neste ano. Pelo contrário: o baixíssimo nível prevaleceu, para deleite dos fanáticos bolsonaristas que vibram com a falta de decoro e decência de seu “mito”.

Problemas muito palpáveis e visíveis, como o avanço da miséria, o retorno da fome, o aumento da inflação e o pífio crescimento econômico – legados do governo Bolsonaro –, cederam lugar a discussões falso moralistas baseadas em desatinos, como o fim da família, a ameaça de fechamento de igrejas, a legalização das drogas, a liberação do aborto e a imposição de banheiros unissex para crianças em escolas, assuntos que nem sequer fazem parte das atribuições da Presidência da República. Incapaz de sensibilizar os pobres que votam em seu adversário, mesmo depois de ter movido mundos e fundos para tentar comprar seus votos, restou a Bolsonaro apelar para o “terreno das crenças e das paixões”, como bem notou Vinícius do Valle, diretor do Observatório Evangélico, em análise no Estadão.

Houve quem tenha avaliado que Lula, se efetivamente quisesse conquistar o voto dos evangélicos, deveria ter apresentado tal carta há muito mais tempo. De fato, um político que almeja ser o líder de uma frente ampla, como é o caso do petista, precisa fazer acenos a todos os segmentos da sociedade, em especial àqueles que lhe são hostis. A resistência do petista em ceder a esses apelos, no entanto, é compreensível, ainda que as pesquisas indiquem que essa atitude possa ter lhe custado votos. A mera existência desse manifesto aos evangélicos, que incluiu a citação explícita de passagens bíblicas e a defesa reiterada da liberdade religiosa que Lula nunca atacou nem ameaçou, é a prova cabal de que Bolsonaro capturou a pauta nacional, transformando a eleição em “Juízo Final”.

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