domingo, 30 de outubro de 2022

País fraturado entre ordem legal e fascistoides, não entre Lula e Bolsonaro


Carla Zambelli de arma em punho. Quando o desastre passar, e um dia passa, essa imagem será um dos emblemas destes tempos. Esta senhora fazendo história... Quem diria!? Imagem: https://br.depositphotos.com; Reprodução

Qualquer que seja o resultado da eleição deste domingo, não há caminho fácil para o país. O estrago provocado por Jair Bolsonaro no ambiente político é muito maior do que qualquer um imaginava quando ele venceu há quatro anos. Surpreenderam-se mesmo os que pensavam as piores coisas e fizeram as piores projeções — e sempre estive entre os mais pessimistas.

Temos as eleições mais violentas e eivadas de ilegalidades desde a redemocratização. Bolsonaro não deu o golpe que ambicionou, mas golpeia o país um pouco por dia. Se Lula vencer, tem-se uma nesga de esperança. Se perder, Bolsonaro dobrará a aposta na suposta revolução conservadora, que se traduz, na verdade, num processo de "fascistização" do Brasil.

Inexiste fascismo sem fascistas, mas existem fascistoides sem fascismo. A democracia brasileira está sob ataque desde 1º de janeiro de 2019. E quem lidera esse processo é o presidente da República. Mesmo com a possível vitória de Lula, observe-se que essa disputa se dá sob circunstâncias inéditas. As PECs do ICMS e dos benefícios sociais, é preciso que nos lembremos sempre, afrontam a Constituição e as leis. Mas não seria o Supremo a se levantar contra elas — imagino quantas vezes Bolsonaro não sonhou com isso para ter o pretexto de jogar a população contra o tribunal. O uso despudorado da máquina teve continuidade entre o primeiro e o segundo turnos.

Não se tem notícia, em pleitos anteriores — e isso inclui 2018 —, de movimentos organizados de empresários para intimidar os empregados, ameaçando-os com demissão em caso de derrota de Bolsonaro. Neste ano, são milhares de denúncias. O despudor é tal que alguns preferem a outra face da chantagem, que consiste em oferecer pequenos benefícios caso o presidente se reeleja. A prática viola, claro!, a legislação eleitoral, mas agride, antes de mais nada, a Constituição.

VIOLÊNCIA ARMADA
A violência armada explodiu no Brasil. Em 12 dias, três eventos graves com armas tiveram bolsonaristas no centro da cena. Em Paraisópolis, no dia 17, um homem desarmado foi assassinado pelos seguranças de Tarcísio de Freitas. Estavam com o candidato, entre dois outros, dois agentes da Abin. Um deles pediu que o cinegrafista apagasse imagens, decisão que o candidato defendeu no debate da Globo.

Seis dias depois foi a vez de Roberto Jefferson disparar dezenas de tiros contra policiais federais, atacando-os também com granadas. São gritantes as evidências de que premeditou a pantomima violenta para criar um factoide eleitoral. Neste sábado, na véspera da eleição, a bolsonarista Carla Zambelli correu armada pelas ruas de São Paulo, chegou a disparar um tiro para o alto, como se ouve e como ela mesma admite. Estava no encalço de um eleitor de Lula que a teria ofendido. Em entrevista, disse que desrespeitou, de propósito, deliberação do TSE sobre porte de arma em período eleitoral. Também afirmou que foi empurrada, exibindo um ferimento no joelho. Um vídeo prova que ela tropeçou. O homem que ela perseguia não teve nada com a queda.

Pergunto — e é apenas questão retórica porque já tenho a resposta — se a própria imprensa emprestou a esses episódios a devida gravidade. Notem que os casos acima dizem respeito a bolsonaristas, vamos dizer, "notáveis". O clima de violência e de ameaça está em todo canto. Polícia Rodoviária Federal e Polícia Federal tiveram de ser contidas por despachos de Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes porque anunciaram operações especiais que mal disfarçavam seu caráter intimidatório.

QUAL É A DIVISÃO?
Aqui e ali a gente lê que o país chega "dividido", "fraturado", "rachado" ao dia da eleição. É preciso deixar claro o que se quer dizer com afirmações com esse teor. Qualquer disputa com dois finalistas representa uma divisão, não é mesmo? Não haveria nada de errado ou de particularmente preocupante se dois candidatos tivessem pouco mais, pouco menos de 50% dos votos, caracterizando, então, a tal polarização.

Ocorre que boa parte dessas análises omite o fato de que essa "fratura" não se dá entre Lula e Bolsonaro. Eles são apenas personagens do verdadeiro confronto, travado entre democracia e autoritarismo; entre tolerância e intolerância; entre pluralidade e unitarismo fascistoide. E aqui está o erro de análise essencial que contamina boa parte da imprensa, que acaba normalizando comportamento e valores que agridem as instituições.

Qualquer que seja o resultado, não teremos dias suaves pela frente, isso é verdade. A questão é saber se vamos enfrentá-los respeitando as instituições ou se elas permanecerão sob ataque, até que se consiga mudar a natureza do regime que nos governa. De condescendência em condescendência, chegamos aqui.

Imaginem se fosse um negro a perseguir pelas ruas, com arma em punho, disparando para o alto, a sra. Carla Zambelli. Estaria morto. A exemplo do cadáver — DESARMADO — produzido pelos seguranças de Tarcísio em Paraisópolis.

O VERDADEIRO RACHA
O país está, sim, rachado, mas não entre Lula e Bolsonaro. O confronto se dá entre a lei e o vale-tudo. Setores do jornalismo estão fazendo um esforço danado para não chamar as coisas pelo nome. Preferem fazer como não faz o avestruz: enfiar a cabeça no buraco, fingindo que o diabo não é tão feio como se pinta. A oposição se dá entre democratas e fascistoides, sim. "Ah, então todo eleitor de Bolsonaro é um fascista?" A pergunta é burra, mas respondo: não! Assim como nem todo eleitor de Lula é um democrata exemplar. É preciso ver o conjunto de valores e as praticas das lideranças de um lado e de outro. E se terá resposta.

Se Lula vencer esta eleição, reitero o que já disse em outro texto, será quase um milagre da sua biografia, com o concurso, muito especialmente, dos pobres, dos negros, dos nordestinos e das mulheres, que terão feito a diferença e garantido mais uma chance à democracia. E olhem que ela tem sido menos generosa com eles do que com outros. Talvez intuam que, sem a dita-cuja, tudo pode ser muito pior. E seria.

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