terça-feira, 20 de dezembro de 2022

Foragido, traficante enganou Exército, conseguiu se registrar como CAC com documento falso e comprou arsenal


Renato José Mafiolete, de 35 anos, é condenado no ES

Renato José Mafiolete, de 35 anos, levava uma vida confortável em Vila Velha, cidade do litoral capixaba ligada a Vitória pela ponte que se tornou um cartão-postal do Espírito Santo. Após se mudar, em fevereiro de 2022, alugou dois apartamentos com vista para o mar nas praias de Itapoã e Itaparica, ambos redutos de turistas e de famílias de classe média-alta. A cada quinze dias, trocava de moradia. Mafiolete pouco saía de casa, exceto para caminhadas na orla, passeios no shopping e seu passatempo preferido: praticar tiro esportivo. Logo que chegou a Vila Velha, conseguiu com o Exército um certificado de registro de caçador, atirador e colecionador (CAC), associou-se a um clube de tiro e, em menos de dez meses, completou o treinamento para se tornar instrutor.

A rotina de atirador era um disfarce: Mafiolete, conhecido como Renatinho da Tapera em Florianópolis, era um dos traficantes mais procurados de Santa Catarina. Acumulava penas de 35 anos por tráfico e homicídio e estava foragido desde 2018, quando fugiu da cadeia após ser autorizado pela Justiça a visitar sua família. Com um documento de identidade falso, enganou o Exército e adquiriu armas, acessórios e munição até ser desmascarado e preso, em 1º de novembro, por agentes do Departamento Especializado em Narcóticos (Denarc) do Espírito Santo.

Mafiolete foi cercado pela Polícia Civil no estacionamento do Boulevard Shopping, em Vila Velha, onde havia acabado de almoçar com a namorada. Vestia uma camisa vermelha com a inscrição “Instrutor de armamento e tiro” nas costas. Ainda tentou fugir na direção de seu carro. No veículo, os policiais encontraram uma pistola. Ao delegado Tarcísio Otoni, chefe do Denarc capixaba, lamentou, ao ser preso, não ter conseguido usar a arma.

— Disse que conseguiria ali matar dois ou três policiais, pela especialização que tem — contou Otoni à imprensa local.

Arsenal foi encontrada na casa do CAC — Foto: Polícia Civil do Espírito Santo

A polícia apreendeu um fuzil equipado com uma mira telescópica, uma carabina, 835 cartuchos, 17 carregadores e um colete balístico num dos locais onde o chefe do tráfico vivia, uma cobertura na Praia de Itapoã. Tudo obtido graças ao certificado de CAC em nome de Renato Dias Gomes.

— Quando estava foragido, Mafiolete usou uma certidão de nascimento falsa para emitir uma carteira de identidade no Pará. Foi usada por ele para se credenciar como CAC — explica Larissa Lacerda, delegada-adjunta do Denarc.

Em dez meses, Mafiolete adquiriu seis armas. Além das três que a polícia capixaba encontrou em sua casa, havia comprado outra pistola, uma carabina e uma espingarda que não tinham sido entregues pelo correio. O Denarc entrou em contato com a fabricante e apreendeu todo o armamento.

Até 2019, Mafiolete não poderia comprar o fuzil encontrado na cobertura nem se tivesse um certificado de atirador desportivo. Foram as mudanças promovidas pelo governo Bolsonaro que possibilitaram o acesso de CACs a armas de grosso calibre, graças a uma portaria publicada pelo Exército em 2019. No mesmo ano, um decreto do presidente permitiu a atiradores desportivos comprar até 30 dessas armas. Desde setembro, o Supremo Tribunal Federal determinou que a compra de armas de uso restrito só pode ser autorizada “no interesse da segurança pública ou da defesa nacional, não em razão do interesse pessoal”. A decisão não afetou as armas que já fazem parte do acervo dos CACs.

Em 24 de novembro, o juiz José Augusto Farias de Souza, da 1ª Vara Criminal de Vila Velha, tornou Mafiolete réu por porte e posse ilegal de armas. O Denarc do Espírito Santo investiga se pelo menos parte do arsenal seria repassado a comparsas em Santa Catarina ou para facções capixabas, em troca de proteção.

— Ele poderia simplesmente simular o furto das armas e desviá-las para o mercado ilegal — afirma Claudio Monteiro, delegado titular da Delegacia de Repressão a Entorpecentes (DRE) catarinense.

Renato foi preso com camisa de instrutor de tiro — Foto: Polícia Civil do Espírito Santo

Desde que conseguiu, em 2018, a saída temporária e fugiu da Colônia Penal Agrícola de Palhoça, no litoral catarinense, Mafiolete — integrante da maior facção do tráfico no estado, que controla a venda de drogas no Sul de Florianópolis — passou a atuar como fornecedor de armas e drogas. Segundo a Polícia Civil de Santa Catarina, que recebeu a denúncia de que o foragido estava morando em Vila Velha e a repassou aos capixabas, o traficante esteve, nos últimos quatro anos, no Uruguai e no Paraguai, em busca de contatos para adquirir material bélico, cocaína e maconha.

Atentados

Mafiolete é apontado pela polícia como um dos responsáveis pela onda de atentados que aterrorizou Santa Catarina entre novembro de 2012 e fevereiro de 2013. Ônibus foram queimados e bases da polícias foram alvo de tiros e bombas caseiras em mais de 30 municípios. A investigação sobre os atentados identificou 97 traficantes responsáveis. Um deles era Mafiolete, descrito no inquérito como “disciplina”, ou seja, o membro do grupo que executa nas ruas as ordens que partem da cadeia.

Em março de 2013, Mafiolete foi preso durante uma ação cinematográfica: após ser abordado, ele foi perseguido pelo bairro da Tapera, onde chefiava o tráfico, por PMs em carros e num helicóptero. Foi condenado a 19 anos de prisão e transferido para a Penitenciária Federal de Porto Velho, em Rondônia, após um pedido do governo do estado, que o considerava um detento de alta periculosidade. Quatro anos depois, Renatinho da Tapera foi mandado de volta a Santa Catarina.

Mafiolete também foi condenado a 16 anos e quatro meses de prisão pelo homicídio de um comparsa, por causa de uma dívida. Dauri França foi atingido com quatro tiros na porta de sua casa, em 14 de setembro de 2007. A polícia descobriu que a vítima vendia cocaína fornecida por Mafiolete no distrito de Ratones, em Florianópolis.

Questionado pelo GLOBO se o certificado de CAC usado por Mafiolete foi cancelado, o Exército alegou que precisaria de nome, CPF e RG para consultar o registro no Sistema de Gerenciamento Militar de Armas. A corporação também alegou que a emissão do documento “só ocorre após o cumprimento de requisitos e exigências como: apresentação de documentação que comprove sua idoneidade, capacidade técnica e aptidão psicológica para utilizar um armamento, além de ter que comprovar residência fixa”. O GLOBO não conseguiu contato com a defesa de Mafiolete.

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