terça-feira, 20 de dezembro de 2022

Gritante inconstitucionalidade (Editorial do Estadão)



Com a derrubada do orçamento secreto pelo STF, é tempo de restaurar as relações institucionais e as funções de cada um dos Poderes, embaralhadas no confuso governo Bolsonaro

Por 6 votos a 5, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu declarar a inconstitucionalidade do orçamento secreto. Revelado pelo Estadão em maio de 2021 e veementemente negado pelo governo federal à época, o esquema garantiu estabilidade política a Jair Bolsonaro no Congresso. Parlamentares blindaram o presidente contra pedidos de impeachment e, em troca, asseguraram recursos para suas bases por meio das bilionárias emendas de relator.

A decisão do STF ganha enorme relevância no momento em que o governo eleito precisa de autorização do Legislativo para aprovar ajustes no Orçamento. A proposta enviada pelo atual Executivo ao Congresso não reservou verba para manter em R$ 600 o piso do Auxílio Brasil, que será renomeado como Bolsa Família, e cortou em 60% a verba de programas como o Farmácia Popular. Reservou, no entanto, R$ 19,4 bilhões para o pagamento das emendas de relator – distribuídas por critérios obscuros pelos presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), sem qualquer vinculação com políticas públicas e sem que a sociedade pudesse sequer identificar o parlamentar que fez a indicação.

Na liminar concedida no fim do ano passado, quando suspendeu a execução das emendas de relator, a ministra Rosa Weber declarou que elas eram um instrumento incompatível com os princípios da publicidade e da impessoalidade dos atos da administração pública e com o regime de transparência no uso dos recursos financeiros do Estado. Ao proclamar o voto definitivo sobre o caso, na semana passada, a presidente do STF reiterou seu posicionamento. Disse que o mecanismo configurava um “verdadeiro regime de exceção ao orçamento da União, em burla à transparência e à distribuição isonômica de recursos públicos”, e funcionava de maneira “incompatível com a ordem constitucional, democrática e republicana”.

A contundência da ministra não deixou espaço para dúvidas sobre a inconstitucionalidade do orçamento secreto. Chama a atenção, portanto, que o plenário do STF tenha derrubado o dispositivo por apenas um voto, o que mostra o quanto a luta política contaminou o Supremo. Acompanharam Rosa Weber os ministros Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Luiz Fux, Cármen Lúcia e Ricardo Lewandowski. Já André Mendonça, Nunes Marques, Alexandre de Moraes, Dias Toffoli e Gilmar Mendes divergiram da ministra, cobrando transparência e publicidade nas emendas como contrapartida para sua manutenção.

Três dias antes, na tentativa de influenciar os votos remanescentes dos ministros, o Congresso aprovou um conjunto de normas para distribuição das emendas. A nova regra estabelecia uma divisão conforme o tamanho das bancadas dos partidos, com divulgação dos nomes dos parlamentares que fizessem as indicações e alocação de metade da verba em saúde, educação e assistência social. Os termos da resolução são o maior reconhecimento, por parte da Câmara e do Senado, de que o orçamento secreto vinha, de fato, funcionando à margem da legalidade.

Diante do gigantismo que as emendas assumiram, as consequências do julgamento são imprevisíveis, mas devem alterar a dinâmica das relações entre os Poderes que vigorou no governo Bolsonaro. Lideranças veem influência do presidente eleito Lula da Silva no voto do ministro Ricardo Lewandowski, com quem contavam para manter o mecanismo vivo, e prometem revidar.

Lula ainda precisa dos deputados para aprovar a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Transição, mas uma liminar concedida pelo ministro Gilmar Mendes abriu caminho para financiar o piso do Bolsa Família por meio de crédito extraordinário. É menos do que ele queria, mas certamente soluciona sua demanda mais urgente e abre espaço para negociações posteriores sob novas bases.

Sejam quais forem os próximos capítulos dessa novela, é tempo de restaurar as relações institucionais e as funções de cada um dos Poderes após o confuso governo de Bolsonaro. A elaboração do Orçamento é função do Executivo. Ao Legislativo, cabe aprovar a peça orçamentária e propor correções, além de fiscalizar o uso dos recursos e avaliar sua execução e aplicação. Para ambos, vale o princípio da transparência, como determina a Constituição.

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