Gilmar Mendes, decano do Supremo: o ministro lembrou que benefício do Bolsa Família está, na verdade, na Constituição e em lei |
Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara e Luís XIV do Congresso, está muito menos poderoso do que estava ontem à tarde, quando se encontrou com Lula para, mais uma vez, deixar claro como é árduo e trabalhoso o caminho para apoiar a PEC de Transição. Sabem como é... Cachorro amarrado com linguiça vai criando certas baldas...
Dois eventos que acabaram coordenados no tempo, mas não subordinados entre si, tiraram de combate parte da artilharia de Lira. Vamos ver como ele vai tentar virar o jogo. Desde que se lançou candidato à Presidência da Câmara em parceria com Bolsonaro, sua regra tem sido avançar sempre. Agora, dois entraves à frente: uma decisão do ministro Gilmar Mendes, de que trato abaixo, sobre os recursos do Bolsa Família, e a derrota, por 6 a 5, do chamado "Orçamento Secreto" ou "Emendas do Relator", na forma como existe hoje.
MENDES NÃO INVENTOU NADA
Ontem à noite, Mendes atendeu a parte de uma petição apresentada pelo senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP). Em síntese, o ministro entendeu que o pagamento dos benefícios de renda mínima deve ser custeado pelo espaço fiscal aberto com a PEC dos precatórios. O que faltar pode ser coberto pela abertura de créditos extraordinários (Parágrafo 3º do Artigo 167 da Constituição) -- e, pois, a aprovação de uma PEC não é o único caminho para tanto. Mais: esse dinheiro pode ficar fora do teto de gastos, previsto Inciso II do Parágrafo 6º do artigo 107 das Disposições Transitórias da Carta.
Será que Mendes está inventando ou legislando? A resposta é "não". No ano passado, Mandado de Injunção impetrado pela Defensoria Pública da União cobrou que a União tomasse as providências para a definição de uma Renda Básica da Cidadania, conforme dispõe a Lei 10.835, aprovada em 2004 para ser implementada em 2005, o que nunca aconteceu. Destaque-se que, no mérito, o tribunal votou por unanimidade em favor de sua implementação.
Os ministros se dividiram apenas quanto à forma. Marco Aurélio, relator da petição, estabeleceu, então, um prazo um ano para a lei entrar em vigor e defendeu que se procedesse ao pagamento de R$ 1.045 enquanto o governo não decidisse o modo de pôr a medida em prática. Seguiram-no Edson Fachin, Rosa Weber e Ricardo Lewandowski.
Mendes abriu a divergência, defendendo que o benefício atendesse às pessoas em situação de pobreza e extrema pobreza, com a implementação gradual da Renda Básica de Cidadania. E ponderou então: "Eventual concessão da tutela invocada pelo impetrante, mediante fixação arbitrária dos valores e das condições de elegibilidade das primeiras etapas de implementação da renda básica, fatalmente levaria ao desarranjo das contas públicas e, no limite, à desordem do sistema de proteção social brasileiro". Seu voto foi seguido por outros seis ministros — Dias Toffoli, Alexandre de Moraes, Cármen Lúcia, Nunes Marques, Roberto Barroso e Luiz Fux —, e ele se tornou relator do acórdão.
Vamos lá. A verdade é que nunca houve uma regulamentação de uma renda básica da cidadania, nos termos da Lei 10.835. O programa "Bolsa Família" — rebatizado de Auxílio Brasil e que voltará a ter seu nome original — fez as vezes do que está previsto em lei, mas a grana sempre dependeu de votações "ad hoc", feitas com a finalidade garantir o dinheiro.
Ora, como lembraram a petição do senador Randolfe Rodrigues e a própria decisão de Mendes, há o risco real, dado o andamento das coisas, de que inexista verba para pagar os R$ 600 do Bolsa Família a partir de 2023, uma vez que o Orçamento entregue ao Congresso prevê apenas R$ 405 aos beneficiários.
Escreveu, então, o ministro dando efetividade àquilo que o Supremo decidiu por unanimidade no ano passado:
"Assim, reputo juridicamente possível que eventual dispêndio adicional de recursos com o objetivo de custear as despesas referentes à manutenção, no exercício de 2023, do programa Auxílio Brasil (ou eventual programa social que o suceda na qualidade de implemento do disposto no parágrafo único do art. 6º da Constituição), pode ser viabilizado pela via da abertura de crédito extraordinário (Constituição, art. 167, §3º), devendo ser ressaltado que tais despesas, a teor da previsão do inciso II do §6º do art. 107 do ADCT não se incluem na base de cálculo e nos limites estabelecidos no teto constitucional de gastos."
Para a turma que costuma ter sororoca quando se fala em "responsabilidade social", Mendes foi ao ponto:
"É inegável que o advento da Lei Complementar 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal) representou a instituição de um mecanismo mínimo de gestão que assegurou resultados evidentes no cenário de uma até então desencontrada política fiscal. A instituição do regime fiscal dos arts. 106 a 114 do ADCT pela EC 95/2016 é medida que almeja concorrer para esse mesmo fim.
A instituição de normas de boa governança fiscal, orçamentária e financeira, entretanto, não pode ser concebida como um fim em si mesmo. Muito pelo contrário, os recursos financeiros existem para fazer frente às inúmeras despesas que decorrem dos direitos fundamentais preconizados pela Constituição. Nesse contexto, urge a necessidade de desenvolvermos semelhantes mecanismos no âmbito da responsabilidade social, facilitando a elaboração, implementação, consolidação e expansão de políticas públicas sociais por parte de todos os Entes Federativos. A adoção de política pública previsível e estável é condição essencial ao crescimento econômico sustentável e, consequentemente, catalisadora da geração de emprego, renda e do bem-estar social."
ESTÁ NA CARTA
Vale dizer: o ministro lembra que é preciso que o Estado brasileiro defina uma política "previsível e estável" de renda básica, que não dependa, a cada ano, de penosas negociações para fazer valer o que está na Constituição e na lei. Não custa lembrar três disposições da Carta:
Inciso III do Artigo 3º
Constitui objetivo fundamento da República Federativa do Brasil erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
Artigo 6º, Parágrafo Único:
São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
Todo brasileiro em situação de vulnerabilidade social terá direito a uma renda básica familiar, garantida pelo poder público em programa permanente de transferência de renda, cujas normas e requisitos de acesso serão determinados em lei, observada a legislação fiscal e orçamentária.
Inciso X do Artigo 23:
É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a integração social dos setores desfavorecidos.
E AGORA?
Embora a decisão de Mendes destaque que combater a pobreza e instituir a renda básica de cidadania são mandamentos legais, sua decisão deixa claro que a dotação fora do teto, com a abertura de crédito extraordinário, servem ao propósito de garantir o pagamento dos R$ 600 do Bolsa Família -- e entendo que haver espaço para o futuro governo tratar também dos R$ 150 a cada criança com menos de seis anos pertencente a famílias que integram o programa. Mas creio que isso pode ser definido em agravo a ser impetrado pelo próprio Randolfe Rodrigues. A ver.
A PEC da Transição é mais ampla e busca garantir dinheiro para outras rubricas do Orçamento que estão também em petição de miséria. Já lembrei aqui: a dotação da Saúde traz R$ 16,7 bilhões a menos do que neste ano. Ao programa Minha Casa Minha Vida, foram destinados R$ 34 milhões. A Educação teve uma redução de mais de R$ 4 bilhões.
Assim, ao futuro governo continua necessário aprovar a PEC da Transição. A decisão de Mendes, no entanto, assegura que não haverá paralisia no pagamento dos R$ 600 do Bolsa Família caso a negociação vá à breca.
Aqui e ali se dizia que a abertura de crédito extraordinário poderia ser um caminho inseguro, uma vez que o teto de gastos está constitucionalizado. Mendes decide que não e explica por quê.
NÃO É ESCUDO
Em seu voto, o ministro resgata trecho do próprio voto, em 2021, quando a União apôs embargos de declaração por ocasião daquele Mandado de Injunção que pedia a implementação do programa de renda mínima:
"[o teto de gastos não pode ser usado] "como escudo para o descumprimento de decisões judiciais, circunstância que, inclusive, foi considerada no voto condutor do acórdão recorrido, o qual, ao divergir do relator, determinou que o valor do benefício deveria ser fixado pelo Poder Executivo, 'no exercício fiscal seguinte ao da conclusão do julgamento do mérito (2022)', concedendo um prazo para que os governantes pudessem se organizar".
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