O Supremo Tribunal Federal começa a julgar nesta quarta as ADPFs (Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental) que apontam que o chamado Orçamento Secreto, que recebe o nome técnico de "emendas do relator", fere, como diz o nome do instrumento, preceitos fundamentais consagrados pela Constituição. É importante lembrar que a ministra Rosa Weber, relatora do caso, havia suspendido monocraticamente a execução dessas emendas em novembro do ano passado, decisão referendada pelo tribunal por 8 a 2. Depois que o Congresso tomou algumas medidas, na aparência ao menos, em favor da transparência, Rosa as liberou, sobretudo porque parte dos recursos, por lei, vai para a Saúde. Mas o tribunal não tomou uma decisão de mérito, como se fará agora, no âmbito das ADPFs 850 (Cidadania), 851 (PSB) e 864 (PSOL).
As três ações argumentam, na prática, a mesma coisa. Como está, as "emendas do relator" colidem frontalmente com o Caput do Artigo 37 da Carta, a saber:
"A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência".
Pode-se dar como certa uma coisa: como estão, as "emendas do relator" não ficam. As medidas que foram adotadas no ano passado pela cúpula do Congresso para levar Rosa a cassar a própria liminar são consideradas amplamente insuficientes para atender ao princípio da "transparência". Entre 2020 e 2022, mais de R$ 44 bilhões em recursos públicos já foram destinados por intermédio desse instrumento. E não se consegue saber o nome de quem solicitou o dinheiro.
A falta de transparência, nesse caso, é mãe da trapaça. Criou-se uma verdadeira indústria criminosa à sombra do sigilo. Picaretas dos mais diversos matizes acabam beneficiados. E, por óbvio, seria preciso investigar para saber se está em curso a "lei do retorno" — vale dizer: aquele que recebe o dinheiro indevido compensa o parlamentar que destino o recurso. Mas como sabê-lo se o nome de quem solicitou o dinheiro é desconhecido? Leiam, a propósito, reportagem de Breno Pires sobre a suposta explosão de gastos no Saúde em cidades do Maranhão. Igarapé Grande, por exemplo, tem apenas 11 mil habitantes, mas registrou, só no ano de 2020, 361 mil consultas médicas e 12,7 mil radiografias de dedo. Dados falsos foram inseridos no SUS para posterior compensação por meio de emendas.
Um caso se tornou particularmente eloquente (reproduzo trecho da reportagem):
"O festival de verbas criou situações esdrúxulas. Pedreiras, que fica a cinco horas de São Luís e tem 39 mil habitantes, informou que, no decorrer de 2021, realizou 540,6 mil exodontias, o nome técnico da extração dentária. Para chegar a tanto, Pedreiras teria que ter arrancado catorze dentes de cada morador. É quatro vezes mais exodontias do que fez toda a cidade de São Paulo. A roda não para: nos primeiros quatro meses deste ano, já foram mais 220,4 mil extrações - o que, feitas as contas, dá dezenove dentes extraídos por habitante, mais ou menos a metade da arcada dentária de todos os moradores. A prefeita Vanessa Maia (Solidariedade) é enfermeira de formação, usa aparelho dentário, tem um sorriso largo e, aparentemente, é uma exceção municipal: possui todos os dentes. Procurada para explicar por que administra a cidade mais banguela do país, a prefeita não respondeu as ligações da piauí."
Observem: ainda que não houvesse fraude nenhuma — e, convenham, ela é escancarada —. o princípio da eficiência, consagrado pela Carta, está sendo violado porque é óbvia a falta de critério na distribuição de recursos, o que impede a elaboração de políticas públicas. Vejam a rotina de absurdos, por exemplo, na Codevasf (Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba). O Orçamento de 2023, picareta como é — e terá de ser resenhado pelo governo Lula — reserva R$ 19,4 para as chamadas "emendas do relator". Atenção: à União, como investimento, reservam-se ridículos R$ 22 bilhões.
Assim, tem-se que a prática agride os princípios da transparência e da eficiência do gasto, mesmo que não houvesse salteadores no meio do caminho.
EQUIDADE
E há ainda o problema da equidade. Ainda que exista razoabilidade no fundamento de que parlamentares da base do governo contem com mais facilidades na obtenção de recursos -- até porque existem as emendas impositivas individuais, que a todos iguala, e as de bancada --, o expediente sigiloso não pode se constituir num esquema de cooptação, criando-se no Congresso um verdadeiro poder paralelo para subjugar vontades.
O julgamento começa nesta quarta. Ninguém conhece o voto de Rosa Weber. Elaborou-se no Congresso uma minuta de Decreto Legislativo com regras que tornariam, de fato, transparentes as emendas do relator. A questão é saber que partida dará Rosa com o seu voto. Pode sustentar que o instrumento que hoje comanda o Congresso é inconstitucional e ponto. Pode, de outro modo, fazer um voto modulando as precondições para a liberação de recursos: transparência, eficiência e equidade. Sabe-se que a ministra considera que o Congresso não cumpriu o que ela entendeu ser o combinado quando cassou a própria liminar no ano passado. A minuta de Decreto Legislativo é justamente um instrumento para tentar convencer a relatora do caso, também presidente da Corte.
VAI ACABAR?
As emendas do relator não vão acabar até porque, na sua forma virtuosa, são obviamente necessárias. Servem para fazer ajustes e para calibrar a distribuição de receitas extraordinárias. Não parece que seja tarefa do Supremo dizer o volume de recursos que pode ficar sob essa rubrica. Eis uma tarefa que há de ser mesmo do Legislativo. Ocorre que a nenhum Poder se dá a licença para ser despótico, para fazer o que lhe dá na telha.
Secreta coisa não pode ser, nem em parte, porque o dito-cujo, com nome e sobrenome, atende por "Orçamento Público". É peça fundamental da cidadania, uma vez que distribui os recursos para o atendimento das demandas da população, que escolhe nas urnas o presidente e o Congresso, mas não o Supremo.
Especula-se aqui e ali que um dos ministros pode pedir vista, o que empurraria a decisão para o ano que vem. É bom lembrar que as ADPFs em julgamento trazem um pedido de concessão de liminar. Rosa parece determinada a não deixar a situação como está. Assim, mesmo em caso de pedido de vista, ela pode conceder essa liminar suspendendo a execução das emendas na forma como existe. A menos que a cúpula do Congresso a convença de que, desta feita, a transparência é para valer.
E O GOVERNO LULA?
Lula criticou, nem poderia ser diferente, o sequestro orçamentário. Mas sabe que precisa governar. Por isso, tanto o presidente eleito como o PT decidiram que se deve deixar a questão para o Supremo, sem pressões ou proselitismo. Afinal, observem que as "emendas do relator" compareceram à mesa durante as negociações da PEC de Transição, aprovada ontem pela CCJ do Senado com R$ 145 bilhões fora do teto.
Para o futuro presidente, em tese ao menos, o bom é que a cúpula do Congresso não disponha de R$ 19 bilhões para fazer as suas próprias escolhas, como se o país estivesse sob a égide já de um semipresidencialismo ou de um parlamentarismo mitigado. Não está. Mas é ainda melhor que não comece a governar com um Congresso majoritariamente hostil.
Lula faz bem em ficar longe da questão e em deixar que as coisas se resolvam segundo parâmetros constitucionais. Como está, insista-se, a coisa não fica. A questão é definir, então, como fica, de modo a que o país não seja tragado por um confronto entre os Poderes. Não cabe ao Supremo elaborar peça orçamentária. Mas a Corte não pode permitir que uma montanha de dinheiro público seja torrada ao sabor da simples conveniência de uns tantos, alheios às exigências de transparência, eficiência e equidade. As aberrações a que todos assistimos durante o governo Bolsonaro não podem continuar.
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