quinta-feira, 3 de novembro de 2022

Com "modelito Zelensky", Bolsonaro apoia golpismo, mas pede estradas livres


Presidente apela à "estética Zelensky" para simular o homem que está organizando a resistência. 
Só se for à democracia... Imagem: Reprodução/Redes Sociais

O presidente Jair Bolsonaro e família prosseguem na delinquência golpista. Em companhia do vice, Hamilton Mourão, senador eleito pelo Rio Grande do Sul, embora um e outro finjam desestimular ações radicais. As palavras fazem sentido e estou atento a ele.

Como escrevi aqui na manhã de ontem, o tão aguardado "pronunciamento" do presidente no dia anterior fora insuficiente para pôr fim aos bloqueios das estradas porque mal se percebeu que era isso o que ele queria. Se bem se lembram, ele se limitou a condenar métodos que, segundo disse, eram típicos das esquerdas. É possível que seus fanáticos nem tenham entendido direito o que quis dizer.

Pois bem: ontem, ele decidiu gravar um vídeo defendendo a liberação das estradas. Estava de camiseta, apelando, como notou minha mulher, a uma certa "estética Zelensky", como se falasse desde um posto situado em algum lugar secreto e seguro, organizando a resistência. E voltou a chamar atos criminosos de democracia — o que tem sido uma constante nestes quatro anos.

Qual é o ponto? Os donos do dinheiro começaram a se incomodar com as interdições nas estradas. Muitos deles votaram em Bolsonaro e fizeram campanha para ele. Começa a haver ameaça de desabastecimento de alguns produtos. O "Mito" tem ainda dois meses de governo pela frente, e os problemas logo começariam a cair no seu colo. No vídeo, então, diz:

"Os protestos, as manifestações, são muito bem-vindas (sic): fazem parte do jogo democrático. E, ao longo dos anos, muito disso foi feito pelo Brasil: na Esplanada, Copacabana, Paulista e tantos e tantos lugares. Agora tem algo que não é legal: o fechamento de rodovias prejudica o direito de ir e vir das pessoas. Tá lá a nossa Constituição. E nós sempre estivemos dentro dessas quatro linhas. Você tem de respeitar o direito de outras pessoas que estão se movimentando, além de prejuízos à nossa economia (...). Quero fazer um apelo a você: desobstruam as rodovias. Isso aí não faz parte, no meu entender, dessas manifestações legítimas. Não vamos perder nós aqui essa nossa legitimidade. Outras manifestações que vocês estão fazendo pelo Brasil todo, em praças, faz (sic) parte, repito, do jogo democrático. Fiquem à vontade. E deixo claro: vocês estão se manifestando espontaneamente. (...)"

Desta feita, ele foi explicito: o bloqueio das estradas é ruim, e seus seguidores devem pôr fim a tal prática. Como sabem, a sua cachorrada estava ouvindo muito além do que emitia o apito. Nas frentes de interdição, fanáticos juravam ter contato com fontes em Brasília que estariam a lhes garantir que Bolsonaro era obrigado a esperar 72 horas até emitir um primeiro sinal para a intervenção federal.

Mentiras circulavam no Zap ao sabor da imaginação, e, volta e meia, aos berros e uivos, os celerados comemoravam a prisão de Alexandre de Moraes; a evidência de fraude na eleição; o início da ação militar... É claro que o fenômeno merece ser estudado. Bolsonaro e filhos são espertalhões e sabem que estão manipulando os crédulos. Não há grande novidade nisso. Mas é notável o fervor insano com que a turma das "barricadas" acreditava nas próprias mentiras.

INCENTIVO AO CRIME
Voltemos à fala do presidente. Ainda que com ar compungido, o celerado estava comemorando o sucesso da empreitada. É evidente que o silêncio inicial do presidente e seu primeiro discurso colaboraram para incentivar as interdições, com o comportamento cúmplice da Polícia Rodoviária Federal e das Polícias Militares.

Enquanto Bolsonaro não pediu explicitamente, o que acabou fazendo ontem, para que se pusesse fim aos bloqueios, estes continuaram. É possível que, em mais um ou dois dias, cheguem ao fim. E, assim, o ainda presidente deixa claro que tem o controle sobre os extremistas. Ao seu sinal, eles interditam ou liberam estradas. E contam, como resta evidente, com a colaboração daqueles que deveriam coibir a ação.

Vejam ali. O "Mito" pede o fim das interdições, mas incentiva os demais atos golpistas, que ele chama de "parte do jogo democrático". Está mentindo. Os manifestantes não têm reivindicação nenhuma que não seja "intervenção federal" para impedir Lula de tomar posse. Logo, promovem manifestações ilegais em favor de um golpe de Estado. E, contra essas, o presidente não fala. Ao contrário: ele as incentiva. Cabe a questão: atos dessa natureza são toleráveis no regime democrático? A resposta, obviamente, é "não". E, como também resta evidente, atos assim requerem planejamento e logística. Quem os está financiando?

A conduta dos golpistas, e não apenas dos que bloqueiam vias públicas, é crime tipificado nos Artigo 359-L, 359-M e 359-R do Código Penal. Prestem atenção a este outro trecho da fala do presidente:

"Ao longo desse tempo todo, à frente da Presidência, colaborei para fazer ressurgir o sentimento patriótico, o amor à pátria, as nossas cores verde e amarela, a defesa da família, a defesa da liberdade. Não vamos jogar isso fora. Vamos fazer o que tem de ser feito. Estou com vocês e tenho a certeza de que vocês estão comigo. O pedido é rodovias: vamos desobstruir para o bem da nossa nação e para que nós possamos continuar lutando por democracia e por liberdade".

Notem que ele faz menção, naquela passagem anterior, às muitas manifestações havidas ao longo de seu mandato. Todas elas de teor golpista. Como se pode perceber, não foram em vão. Ele foi cevando um público de fanáticos com sua pregação, de sorte a chamar golpismo de democracia e agressão à ordem constitucional de "respeito à quatro linhas". No trecho acima, reafirma a sua condição de líder dos que pedem golpes de Estado ("estou com vocês e tenho a certeza de que vocês comigo") e anuncia que está no comando. Como foi a impunidade que o trouxe até aqui, convém notar: se os criminosos das estradas e das pregações à porta dos quartéis seguirem impunes, é claro que se viverá sempre um clima de pega-pra-capar no país. É preciso que os organizadores e os participantes dessas patuscadas criminosas saibam que a democracia não comporta a sabotagem dos que querem solapar o regime.

Como já observei aqui, Bolsonaro não pode impor ao país a sua derrota. Valdemar Costa Neto lhe ofereceu um lugar na cúpula do PL — talvez presidente de honra do partido —, e parece certo que o político desempregado tentará comandar a oposição ao governo Lula. Oposição é coisa própria da democracia. Apelar aos quartéis não é. O ainda presidente se mostra disposto a manter a sua turma em permanente estado de sublevação. A razão é simples: ele não reconhece a legitimidade do adversário. É possível que alimente ódio especial pelo líder petista, que o derrotou e fez dele o único presidente a não conseguir um segundo mandato desde que existe a reeleição. Mas ele não respeita ninguém. Vejam o tratamento que dispensou a João Doria, em São Paulo.

Se os crimes de Bolsonaro e os de seus seguidores não forem punidos, os ataques às instituições vão continuar, e ele será, mais uma vez, beneficiário da desordem que promove. É preciso que ele e seus fanáticos sejam convencidos de que esse é um mau caminho.

MOURÃO, O FALSO DEMOCRATA
Mourão pareceu mais realista do que Bolsonaro. Será? Escreveu no Twitter:
"Brasileiros, há hoje um sentimento de frustração, mas o problema surgiu quando aceitamos passivamente a escandalosa manobra jurídica que, sob um argumento pífio e decorridos 5 anos, anulou os processos e consequentes condenações do Lula. Agora querem que as Forças Armadas deem um golpe e coloquem o país numa situação difícil perante a comunidade internacional. Na derrota, temos que ter altivez e sermos desafiadores".

Parece Churchill, mas é só Mourão exercendo golpismo por outros meios. Afinal, já havia dito:
"Nós concordamos em participar de um jogo em que o outro jogador [Lula] não deveria estar jogando. Mas, se a gente concordou, não há mais do que reclamar. A partir daí, não adianta mais chorar, nós perdemos o jogo. Não considero que houve fraude na eleição".

O ainda vice deveria explicar o significado de "concordar em participar" e "jogador que não deveria estar jogando". Quais seriam, no caso, os juízes dos juízes? Mourão agora é censor de decisão de tribunal? Caso tivesse optado por "não participar" em razão da presença de Lula na disputa, recorreriam a que alternativa?

De resto, Mourão sabe muito bem que eles só venceram em 2018 porque Lula foi alijado da disputa por uma condenação sem provas, decidida por um juiz incompetente e suspeito, que depois foi servi-los. Isso, sim, é fraudar o jogo.

Todos os democratas temos de ficar atentos: eles perderam nas urnas, mas não se conformam. O mais manso da turma, como se vê, tem especial predileção pela demonização da Justiça. E não é a primeira vez.

A direita reacionária está aí, a usar os instrumentos da democracia para solapá-la. Será tolerada até quando?

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