quarta-feira, 2 de novembro de 2022

O esperneio dos arruaceiros (Editorial do Estadão)



Bolsonaro enfim se pronuncia sobre a eleição – para se queixar de ‘injustiça’ e justificar a baderna de bolsonaristas; entrementes, Ciro Nogueira inicia transição com os petistas

O presidente Jair Bolsonaro afinal se pronunciou, ontem, sobre as eleições em que perdeu para o petista Lula da Silva, no domingo passado. Fiel a seu espírito antidemocrático, não cumprimentou o vencedor. Ao contrário, sugeriu que foi derrotado pelo que chamou de “sistema”, que teria reservado a ele um tratamento “injusto”. Em outras palavras, não reconheceu a lisura do processo eleitoral – como, aliás, fez durante toda a campanha, sem apresentar provas.

Pior: com isso, justificou a baderna dos bolsonaristas golpistas que resolveram trancar estradas desde domingo para protestar contra a vitória de Lula. Segundo Bolsonaro, esses arruaceiros estão movidos por um “sentimento de indignação” – e se limitou a dizer que “os nossos métodos não podem ser os da esquerda, que sempre prejudicaram a população”. Não houve nenhum apelo explícito para que a baderna cessasse.

Esse pronunciamento tardio nem era necessário, pois a legitimidade da vitória de Lula não dependia da aceitação formal do presidente. E, a bem da verdade, Bolsonaro já havia se pronunciado sobre o resultado da eleição – não por meio de palavras, mas por intermédio desses camisas pardas que, com a omissão da Polícia Rodoviária Federal (PRF), devidamente cooptada pelo bolsonarismo, resolveram infernizar a vida dos brasileiros para manifestar sua insatisfação com a derrota de seu líder.


Essa crise foi diligentemente construída ao longo dos últimos quatro anos. Enquanto se dizia um herói da liberdade e da Constituição, farsa que só tapeou quem se deixou tapear, Bolsonaro disseminou um discurso golpista segundo o qual a sua derrota só poderia ter como causa um complô do tal “sistema” – isto é, as instituições que fizeram prevalecer a lei contra seu golpismo. Disso adveio a desqualificação da imprensa profissional e independente, das instituições republicanas e do sistema eleitoral. Aí estão as consequências.

Mas o País, a despeito de Bolsonaro, continua a ser um Estado Democrático de Direito, razão pela qual é absolutamente inaceitável que a PRF não tenha agido com o devido rigor para impedir que essa súcia de bolsonaristas bloqueasse estradas Brasil afora. Todos os responsáveis por esse levante contra a vontade da maioria dos eleitores declarada nas urnas devem ser severamente punidos na forma da lei, a começar pelo diretor-geral da PRF, Silvinei Vasques, apoiador declarado do presidente da República e, no mínimo, negligente em relação aos delinquentes.

Eis o grau de absurdo da situação: o Supremo Tribunal Federal (STF) teve de ser acionado para autorizar que as Polícias Militares nos Estados cumprissem a lei e liberassem as estradas, diante do que o ministro Alexandre de Moraes classificou, corretamente, como “omissão e inércia” da PRF.

Os bolsonaristas vivem a se queixar do suposto “ativismo” do Poder Judiciário, mas o STF só foi chamado para intervir na questão dos caminhoneiros porque o Poder Executivo se omitiu e porque o diretor-geral da PRF se comporta como chefe de uma milícia a serviço de Bolsonaro, e não como chefe de uma instituição armada do Estado brasileiro.

Por fim, mas não menos importante, o procurador-geral da República, Augusto Aras, inerte diante das flagrantes violações da ordem jurídica e dos direitos e garantias fundamentais ao longo do trevoso período bolsonarista, só agiu contra os baderneiros depois de notificado pelo STF, comprovando sua inaceitável subserviência ao presidente.

Felizmente, ao que parece, noves fora a pirraça de Bolsonaro e a baderna dos bolsonaristas, a transição seguirá seu curso. Logo depois do brevíssimo pronunciamento de Bolsonaro, o ministro-chefe da Casa Civil, Ciro Nogueira, anunciou aos jornalistas que já havia começado as tratativas com a equipe do “presidente” (palavras dele) Lula. Desde domingo, aliás, vários outros políticos ligados ao atual presidente já tratam explicitamente o futuro governo como uma realidade. Ou seja, enquanto Bolsonaro e seus camisas pardas esperneiam contra “injustiças” delirantes, a transferência de poder, para quem interessa, já começou.

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