quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

'Argentina, 1985' e o Brasil de 2023


Soldados desmontam acampamento de apoiadores de Bolsonaro em frente ao quartel-general do Exército em Brasília na manhã desta segunda-feira (9). — Foto: Mauro Pimentel / AFP

Se o Brasil impede qualquer jornalista de se desligar da política nas férias, o entretenimento também não contribui. Assistir ao maravilhoso “Argentina, 1985”, vencedor do Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro, permite transpor para o Brasil pós-8 de janeiro uma série de dilemas vividos na redemocratização dos países da América do Sul, que nossos vizinhos resolveram de forma muito distinta da nossa.

O filme revisita a controvérsia, havida lá e cá, a respeito da conveniência de julgar os militares pelos crimes de tortura, desaparecimento e morte de cidadãos durante a ditadura, contra a ideia, que as Forças Armadas de lá tentaram emplacar sem sucesso, de que se tratava de uma “guerra” e, portanto, caberia uma anistia ampla em nome da pacificação do país.

Por lá prevaleceu a ideia da necessidade de acertar contas com a História. “Para que nunca repitamos”, insistem os responsáveis por acusar Jorge Videla e os demais comandantes das juntas militares.

Aqui, depois de abraçarmos a tese da anistia ampla, geral e irrestrita, ensaiamos reabrir o assunto com a Comissão da Verdade, as pensões a anistiados e no Supremo Tribunal Federal, mas nunca fizemos um julgamento como aquele, aberto ao público, expondo a realidade dos porões.

É impossível dizer se, caso tivéssemos feito, seria mais difícil a Jair Bolsonaro, um militar expulso sem honra e pelas portas dos fundos do quartel, reescrever a História para uma enorme parcela da população, que passou a validar a ditadura e a enaltecer torturadores.

Mas é bem possível que, caso aqueles que permitiram e perpetraram crimes sob a égide do Estado tivessem sido punidos, os militares de hoje tivessem sido menos receptivos a abraçar as teses golpistas do ex-presidente e os ataques ao Judiciário e ao sistema eleitoral validados por generais como Augusto Heleno e Braga Netto.

E, muito provavelmente, o Exército teria tido uma postura bem mais distante quando estivesse diante de acampamentos com conclamação explícita a um golpe de Estado em frente a suas dependências, bem como não teria impedido a prisão de terroristas que foram se abrigar lá depois de efetivamente tentarem levar o golpe a cabo.

Agora, diante da concretização do atentado aos Três Poderes, o governo democraticamente eleito se vê às voltas com o mesmo dilema dos anos 1980: realizar uma investigação profunda do papel das Forças Armadas na incitação ao golpe, com punição exemplar dos responsáveis, ou adotar panos quentes para não dificultar ainda mais a aceitação das Forças a Lula e ao poder do ministro José Múcio.

É grande na sociedade, sobretudo entre os apoiadores do presidente, o clamor para que não haja nenhuma reedição da anistia. O caso dos Estados Unidos mostra que é necessário que se purguem as feridas para que golpistas sejam desencorajados a avançar ainda mais além dos limites.

Mas o martelo não está batido. “A nossa democracia aguenta?”, questionou uma autoridade diretamente envolvida nas apurações.

O governo enxerga as Forças Armadas, sobretudo o Exército, divididas entre os que entendem a distinção entre o governo de turno e o Estado, aqueles que chama de “bolsonaristas legalistas”, a maioria, e uma minoria de “aloprados” dispostos a dar guarida a teses golpistas.

Se foi com Bolsonaro que esse grupo perdeu o medo de evocar em público seu papel de “poder moderador”, fruto de uma leitura golpista do Artigo 142 da Constituição, o ovo da serpente foi chocado ainda no governo Temer, quando essa ideia passou a ser ventilada por generais como Eduardo Villas Bôas, lastreados por juristas como Ives Gandra Martins.

Portanto não é de hoje que os políticos, o Judiciário e o Ministério Público assistem inertes à crescente ideologização no seio das Forças Armadas. A eleição de Bolsonaro, antes um pária de quem os militares faziam chacota, só fez ser galvanizada a leitura de que a população levou os militares de volta ao poder, desta vez pelo voto, endossando o período 1964-1985.

É a partir de narrativas assim, potencializadas pela máquina de radicalização de indivíduos azeitada pelo bolsonarismo e pelo olavismo, que a extrema direita cresceu, se organizou, se armou e ganhou financiadores.

Um polvo com tantos tentáculos precisa ser enfrentado sem que nenhum deles seja poupado, sob pena de a tentação revisionista e de volta a um passado autoritário permanecer fermentando e inviabilizar não só o atual governo, como a própria democracia.

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