No apagar das luzes do governo Jair Bolsonaro (PL), o general Augusto Heleno autorizou a exploração de ouro numa área de 9,8 mil hectares vizinha à Terra Indígena Yanomami, em Roraima. A beneficiária do ato é uma mulher que já cumpriu pena de prisão por tráfico de drogas e que foi denunciada pelo MP (Ministério Público) por suspeita de receptação de pneus roubados.
Heleno concedeu o chamado assentimento prévio, uma autorização necessária para empreendimentos como mineração na faixa de fronteira, que se estende por uma largura de 150 km.
O general da reserva foi ministro do GSI (Gabinete de Segurança Institucional) do começo ao fim do mandato de Bolsonaro. No cargo, era também secretário-executivo do Conselho de Defesa Nacional, a quem cabe dizer sim ou não a projetos de exploração de minérios na área de fronteira.
O aval à pesquisa de ouro, numa área vizinha à terra yanomami, foi dado em 14 de dezembro de 2022 e publicado no Diário Oficial da União do dia seguinte.
Mais de 20 mil garimpeiros invadiram a terra indígena e exploram ouro ilegalmente, por meio de equipamentos e logística assegurados por grupos criminosos que atuam na região.
A invasão teve uma explosão no governo Bolsonaro, que promoveu atos para estimular a mineração nesses territórios, vetada pela Constituição nos moldes como é praticada e como foi estimulada. O governo Lula (PT) fez a promessa de retirar garimpeiros invasores de terras indígenas.
A Folha questionou Heleno sobre a autorização dada 17 dias antes de deixar o cargo de ministro do GSI. Ele disse que "esses assentimentos prévios de garimpo têm um longo processo para que sejam regulados" e que a resposta a ser dada pelo ministério, na atual gestão, seria suficiente. "Não desejo me pronunciar", afirmou por mensagem.
O GSI disse que analisa o email encaminhado pela reportagem no começo da tarde de sexta-feira (13).
Heleno concedeu a autorização para exploração de ouro, numa área 60 vezes maior do que o Parque Ibirapuera, em São Paulo, a Creusa Buss Melotto.
Segundo os documentos que embasaram o assentimento prévio, a área fica em Iracema (RR), a 7,8 km da Terra Indígena Yanomami. Pelos mapas disponíveis no processo, o território avança por assentamentos de reforma agrária.
A autorização do Conselho de Defesa Nacional levou em conta pareceres favoráveis da ANM (Agência Nacional de Mineração), que manteve a área original solicitada, de 9,8 mil hectares.
"O processo está corretamente instruído e seguiu a tramitação normal", disse a ANM, em nota. "A ANM solicita apenas os documentos previstos na legislação minerária. Pesquisas de vida pregressa, judiciais ou afins não são de competência da ANM, cabendo aos órgãos específicos judiciais e de polícia."
Melotto já ficou presa por tráfico de drogas no fim da década de 90 e cumpriu pena de prisão por seis anos, como afirmou à Folha.
"Já cumpri minha pena. Se eu tivesse processo, acha que eu estaria numa cooperativa?", disse.
Ela se refere a duas cooperativas de garimpeiros, uma em Pontes e Lacerda (MT), na qual ocorre exploração de ouro, e outra em Iracema (RR), onde a garimpeira pretende atuar –ela já tem o aval do Conselho de Defesa Nacional.
Registros da Receita Federal mostram que Melotto é presidente da Coopercajaí (Cooperativa de Exploração Mineral de Mucajaí). Mucajaí é o nome de um dos rios que cortam a terra yanomami. A cooperativa, segundo dados da Receita, tem capital social de R$ 1,45 milhão e quer explorar manganês, nióbio, titânio e metais preciosos.
A garimpeira foi denunciada pelo Ministério Público em Mato Grosso, em novembro de 2017, por suspeita de receptação de produtos roubados de uma loja de pneus de Pontes e Lacerda. Entre os produtos roubados estavam dez pneus.
Melotto chegou a ser presa em flagrante por receptação, mas pagou fiança e deixou a prisão. Ela disse nos autos não ter responsabilidade pelos produtos roubados, pois o crime teria sido cometido por garimpeiros que estavam hospedados em um apartamento seu. Os garimpeiros prestaram depoimento com teor semelhante.
A denúncia foi recebida pela Justiça. A defesa da acusada disse que o processo não deveria prosseguir, mas o Ministério Público insistiu na acusação em abril de 2019. Em março de 2022, a comarca de Pontes e Lacerda "vislumbrou hipótese de prescrição virtual" do suposto crime.
A garimpeira, cujo endereço informado é em Vilhena (RO), não respondeu aos questionamentos da reportagem sobre o processo por receptação.
Ela afirmou que o pedido para exploração de ouro não se refere ao território indígena. Melotto disse que esta é a mesma situação de um segundo pedido em tramitação na ANM –documentos deste processo mostram incidência da área na terra yanomami.
"A cooperativa em Roraima tem 52 pessoas. Tenho o sonho de os indígenas fazerem cooperativas e explorarem as próprias áreas", afirmou a garimpeira.
As primeiras pesquisas de ouro ainda dependem de assembleia com os cooperados, disse. "Devem demorar dois anos, é lento o processo. Nosso trabalho é diferente [de garimpeiros invasores da terra indígena]. A gente só vai operar depois de obter todas as autorizações."
Os documentos que embasaram o assentimento prévio apontam que a área autorizada está "entrecortada por rede hidrográfica, o que demanda a estrita observância das regras hidroviárias, bem como o acompanhamento do órgão competente em razão da natureza da atividade". A previsão de gastos no empreendimento é de R$ 2,18 milhões.
Em dezembro de 2021, a Folha revelou que Heleno autorizou o avanço de sete projetos de exploração de ouro em terras indígenas na região conhecida como Cabeça do Cachorro, o que é ilegal.
Os assentimentos prévios foram dados a pessoas e empresa interessados em garimpos numa das regiões mais preservadas da Amazônia, na fronteira do Brasil com Colômbia e Venezuela.
Diante da revelação e da abertura de investigação pelo MPF (Ministério Público Federal), o então ministro do GSI recuou e anulou os próprios atos.
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