terça-feira, 3 de janeiro de 2023

Lula defende punição a golpistas, prega união e ousa falar em Estado ativo


No momento mais emocionante do dia da posse, Lula recebe a faixa presidencial das mãos da catadora Aline Sousa. Ausência de Bolsonaro iluminou a cerimônia Imagem: Carl de Souza/AFP

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez dois discursos, um no Congresso e outro do parlatório, que merecem ser chamados por aquilo que são: "históricos". Sempre trato com muito cuidado esse adjetivo porque me parece temerário que se preveja o que vai fazer história no sentido de ter a permanência garantida. E esses terão. Um trecho do que disse no Parlamento merece ser especialmente destacado:

"A partir de hoje, a Lei de Acesso à Informação voltará a ser cumprida, o Portal da Transparência voltará a cumprir seu papel, os controles republicanos voltarão a ser exercidos para defender o interesse público. Não carregamos nenhum ânimo de revanche contra os que tentaram subjugar a Nação a seus desígnios pessoais e ideológicos, mas vamos garantir o primado da lei.
Quem errou responderá por seus erros, com direito amplo de defesa, dentro do devido processo legal. O mandato que recebemos, frente a adversários inspirados no fascismo, será defendido com os poderes que a Constituição confere à democracia.
Ao ódio, responderemos com amor. À mentira, com a verdade. Ao terror e à violência, responderemos com a Lei e suas mais duras consequências. Sob os ventos da redemocratização, dizíamos: ditadura nunca mais! Hoje, depois do terrível desafio que superamos, devemos dizer: democracia para sempre!"

Começo por aquilo que deveria virar um lema na República, para que nenhum outro pistoleiro ouse transformar em métrica da vida pública a própria estupidez: "Democracia para sempre". De fato, já não cabe, hoje em dia, o "ditadura nunca mais". Porque nunca mais haveremos nem mesmo de cogitar sobre tal possibilidade.

Notem acima: Lula deixa claro que vai governar sem revanchismo, mas avisa que não será o Executivo a promover a impunidade daqueles que atentaram contra a democracia. Que assim seja: o apanágio do regime democrático é o estado de direito, é o respeito ao devido processo legal. Assim, que cada um pague por suas escolhas.

"NÓS CONTRA ELES?" NÃO!
Nos dois discursos, o presidente saudou a vitória da democracia na eleição do ano passado. Isso quer dizer que todos os eleitores de Bolsonaro escolheram o caminho da ditadura ou da antidemocracia? Seria uma interpretação estúpida. Até porque incompatível com outra afirmação feita no parlatório. Mas vamos à sua fala no Congresso a respeito do tema:
"Foi a democracia a grande vitoriosa nesta eleição, superando a maior mobilização de recursos públicos e privados que já se viu; as mais violentas ameaças à liberdade do voto, a mais abjeta campanha de mentiras e de ódio tramada para manipular e constranger o eleitorado.
Nunca os recursos do estado foram tão desvirtuados em proveito de um projeto autoritário de poder. Nunca a máquina pública foi tão desencaminhada dos controles republicanos. Nunca os eleitores foram tão constrangidos pelo poder econômico e por mentiras disseminadas em escala industrial.
Apesar de tudo, a decisão das urnas prevaleceu, graças a um sistema eleitoral internacionalmente reconhecido por sua eficácia na captação e apuração dos votos. Foi fundamental a atitude corajosa do Poder Judiciário, especialmente do Tribunal Superior Eleitoral, para fazer prevalecer a verdade das urnas sobre a violência de seus detratores."

Quem pode contestar que nunca antes a máquina oficial foi usada com tanto desassombro numa eleição? Como ignorar as PECs à beira da urna, financiadas pelo orçamento secreto, com o propósito evidente de interferir no resultado do pleito? Da mesma sorte, assistimos a campanhas terroristas, persecutórias, contra aqueles que ousavam divergir da candidatura oficial. As denúncias e evidências de que empresários ameaçavam empregados com a demissão ou com o fechamento de empresas, no caso de vitória do petista, se multiplicaram às centenas.

E o presidente deu destaque, e com pertinência, à campanha de desinformação das redes sociais, o que pede, diga-se, e ele o disse, regulamentação e consequências legais. Não é possível normalizar o engodo, a mentira, a falcatrua. Se a redes sociais são colonizadas por criminosos, cabe também a elas um trabalho de autorregulamentação, sob pena de terem de responder, de forma solidária, pelos crimes cometidos.

Mas voltemos à questão democrática. Então os 49,1% dos votos válidos dados a Bolsonaro na eleição de 2022 queriam a não democracia? Seria uma estupidez afirmar tal coisa. A questão não tem a ver com os eleitores, mas com o candidato. Perguntas com respostas óbvias:
1: quem ameaçou o país com a não realização de eleições?:
2: quem flertou com um golpe de estado caso fosse derrotado?;
3: quem fez acusações infundadas ao processo eleitoral?:
4: quem, diante da derrota, se negou a reconhecer o resultado?;
5: quem estimulou por palavras, atos e silêncios as manifestações golpistas?

Parte considerável do eleitorado de Bolsonaro deve, sim, querer democracia. Mas há uma quantidade, a ser ainda mensurada, que embarca na conversa de seu líder e prefere a ditadura. Precisam ser convencidas de seu erro, claro! Mas aos líderes de movimentos golpistas... ah, a esses, o tratamento há de ser diferente. Têm de responder na Justiça pelas escolhas que fizeram. Inexiste o direito de pregar golpe de estado: é crime, não liberdade de expressão.

Mas e o eleitorado de Bolsonaro? Lula fez o que lhe cabe fazer: procurou abraçá-los porque é agora presidente de todos os brasileiros, não apenas daqueles que escolheram seu nome. Disse no parlatório:
"Mas quero me dirigir também aos que optaram por outros candidatos. Vou governar para os 215 milhões de brasileiros e brasileiras, e não apenas para quem votou em mim.
Vou governar para todas e todos, olhando para o nosso luminoso futuro em comum, e não pelo retrovisor de um passado de divisão e intolerância.
A ninguém interessa um país em permanente pé de guerra, ou uma família vivendo em desarmonia. É hora de reatarmos os laços com amigos e familiares, rompidos pelo discurso de ódio e pela disseminação de tantas mentiras.
O povo brasileiro rejeita a violência de uma pequena minoria radicalizada que se recusa a viver num regime democrático.
Chega de ódio, "fake news", armas e bombas. Nosso povo quer paz para trabalhar, estudar, cuidar da família e ser feliz.
A disputa eleitoral acabou. Repito o que disse no meu pronunciamento após a vitória em 30 de outubro, sobre a necessidade de unir o nosso país.
Não existem dois brasis. Somos um único país, um único povo, uma grande nação.
Somos todos brasileiros e brasileiras, e compartilhamos uma mesma virtude: nós não desistimos nunca."

É isso. Um presidente não é eleito para governar uma facção nem pode confundir seus apoiadores com o conjunto do povo brasileiro. Até porque a qualquer brasileiro a Constituição garante o direito de fazer oposição. Mas inexiste o direito de tentar solapar o regime democrático.

HERANÇA BOLSONARISTA
Sobre a herança deixada por Jair Bolsonaro, afirmou o presidente no Congresso:
"O diagnóstico que recebemos do Gabinete de Transição de Governo é estarrecedor. Esvaziaram os recursos da Saúde. Desmontaram a Educação, a Cultura, Ciência e Tecnologia. Destruíram a proteção ao Meio Ambiente. Não deixaram recursos para a merenda escolar, a vacinação, a segurança pública, a proteção às florestas, a assistência social.
Desorganizaram a governança da economia, dos financiamentos públicos, do apoio às empresas, aos empreendedores e ao comércio externo. Dilapidaram as estatais e os bancos públicos; entregaram o patrimônio nacional. Os recursos do país foram rapinados para saciar a cupidez dos rentistas e de acionistas privados das empresas públicas.
É sobre estas terríveis ruínas que assumo o compromisso de, junto com o povo brasileiro, reconstruir o país e fazer novamente um Brasil de todos e para todos."

Acho que se fez até agora uma divulgação precária do desastre a que Jair Bolsonaro conduziu o Brasil. Num trecho improvisado, Lula prometeu divulgar a todos os entes institucionais da República o retrato colhido pela equipe de transição. É preciso que esse documento circule, até para que os dados que lá estão sejam cotejados com a realidade.

Exagero de governo que entra? Evidência: a máquina pública estava paralisada. O país deixou de emitir passaportes por falta de recursos. As viaturas da PRF estavam sem manutenção. O Bolsa Família foi desconjuntado. O Orçamento de ficção que Bolsonaro mandou para o Congresso era um crime de lesa governança.

No parlatório, Lula se estendeu sobre o Brasil de Bolsonaro:
"700 mil brasileiros e brasileiras mortos pela covid. 125 milhões sofrendo algum grau de insegurança alimentar, de moderada a muito grave. 33 milhões passando fome. Estes são apenas alguns números. Que, na verdade, não são apenas números, estatísticas, indicadores -- são pessoas. Homens, mulheres e crianças, vítimas de um desgoverno afinal derrotado pelo povo, no histórico 30 de outubro de 2022. Os Grupos Técnicos do Gabinete de Transição, que por dois meses mergulharam nas entranhas do governo anterior, trouxeram a público a real dimensão da tragédia. (...) Quero citar, a título de exemplo, um pequeno trecho das 100 páginas desse verdadeiro relatório do caos produzido pelo Gabinete de Transição. Diz o relatório: 'O Brasil bateu recordes de feminicídios, as políticas de igualdade racial sofreram severos retrocessos, produziu-se um desmonte das políticas de juventude, e os direitos indígenas nunca foram tão ultrajados na história recente do país. Os livros didáticos que deverão ser usados no ano letivo de 2023 ainda não começaram a ser editados; faltam remédios no Farmácia Popular; não há estoques de vacinas para o enfrentamento das novas variantes da covid-19. Faltam recursos para a compra de merenda escolar; as universidades corriam o risco de não concluir o ano letivo; não existem recursos para a Defesa Civil e a prevenção de acidentes e desastres. Quem está pagando a conta deste apagão é o povo brasileiro."

A PATRULHA VAI SE ARREPIAR
Na solenidade que juntou os Três Poderes, Lula falou na retomada de políticas públicas e na parceria do Estado com o setor privado em favor do crescimento. Três, dois, um... para a patrulha começar: "Ah, vai querer usar o Estado como indutor do desenvolvimento". No que lhe couber, garantida a responsabilidade fiscal, por que não? Vamos à sua fala:
"Hoje mesmo estou assinando medidas para reorganizar as estruturas do Poder Executivo, de modo que voltem a permitir o funcionamento do governo de maneira racional, republicana e democrática. Para resgatar o papel das instituições do Estado, bancos públicos e empresas estatais no desenvolvimento do país. Para planejar os investimentos públicos e privados na direção de um crescimento econômico sustentável, ambientalmente e socialmente.
Em diálogo com os 27 governadores, vamos definir prioridades para retomar obras irresponsavelmente paralisadas, que são mais de 14 mil no país. Vamos retomar o Minha Casa, Minha Vida e estruturar um novo PAC para gerar empregos na velocidade que o Brasil requer. Buscaremos financiamento e cooperação - nacional e internacional - para o investimento, para dinamizar e expandir o mercado interno de consumo, desenvolver o comércio, exportações, serviços, agricultura e a indústria.
Os bancos públicos, especialmente o BNDES, e as empresas indutoras do crescimento e inovação, como a Petrobras, terão papel fundamental neste novo ciclo. Ao mesmo tempo, vamos impulsionar as pequenas e médias empresas, potencialmente as maiores geradoras de emprego e renda, o empreendedorismo, o cooperativismo e a economia criativa."

É preciso saber como será. O BNDES é, até onde se sabe, um banco de fomento. Há um modo de incentivar o desenvolvimento que joga o peso de juros subsidiados para o Tesouro, o que acaba resultando na elevação de juros, que pune toda a sociedade. E há uma maneira de tornar o banco um parceiro da iniciativa privada. Ou o agronegócio reclama, por exemplo, da atuação no Banco do Brasil no financiamento da safra? Não que eu saiba. Há um modo de "expandir o mercado interno e consumo" que gera bolhas de crescimento e acaba resultando em inflação e crise, e há maneira certa de operar essas variáveis. É preciso saber o que vai fazer o governo antes de se demonizarem intenções virtuosas — a menos, claro!, que alguém queira sustentar que o crescimento, por si, é uma má ideia. É?

COMPROMISSO
No Congresso, Lula relembrou em vários momentos o seu compromisso com a responsabilidade social, mas falou algumas palavrinhas mágicas se a turma "Duzmércáduz" quer compromisso com a responsabilidade fiscal, a saber:
"Vamos recompor os orçamentos da Saúde para garantir a assistência básica, a Farmácia Popular, promover o acesso à medicina especializada. Vamos recompor os orçamentos da Educação, investir em mais universidades, no ensino técnico, na universalização do acesso à Internet, na ampliação das creches e no ensino público em tempo integral. Este é o investimento que verdadeiramente levará ao desenvolvimento do país.
O modelo que propomos, aprovado nas urnas, exige, sim, compromisso com a responsabilidade, a credibilidade e a previsibilidade; e disso não vamos abrir mão. Foi com realismo orçamentário, fiscal e monetário, buscando a estabilidade, controlando a inflação e respeitando contratos que governamos este país.
Não podemos fazer diferente. Teremos de fazer melhor."

ENCERRO
Conheceremos o terceiro governo Lula pelas obras. No dia da posse, nos dois discursos, ele só pode se mostrar pelas palavras -- embora o presidente já tenha tomado um conjunto de medidas, todas elas alinhadas com promessas de campanha e que, a meu ver, honram o pacto civilizatório. "Até a desoneração dos combustíveis?" É evidente que não faz sentido eternizar a isenção de impostos federais para gasolina, por exemplo. Mas não é menos evidente que, em razão do destrambelhamento de seu antecessor, Lula não deve ficar inerme diante de uma elevação do preço dos combustíveis no seu segundo dia de mandato. Era uma das armadilhas da "desgovernança" bolsonariana. Há outras.

Mas volto ao ponto: os dois discursos de Lula fazem o elogio da democracia, da pluralidade, da tolerância, da reparação social, de políticas publicas especialmente voltadas para os vulneráveis. O presidente tem a coragem de falar em crescimento econômico — a que ponto chegamos: é preciso coragem para isso! — e de lembrar que o Estado tem, sim, um papel a desempenhar. Pode ser bom. Pode ser deletério.

"Ah, Lula se comportou como um populista, um messiânico, um salvador da pátria..." Ouvi e li atentamente os dois discursos. E li e ouvi um presidente disposto a dialogar com o Parlamento; que fez a homenagem ao Congresso na própria repartição de cargos do governo; que prestou reverência ao Poder Judiciário e que buscou conformar uma base de apoio já na negociação da própria PEC da Responsabilidade Orçamentária. Acho que assistimos à volta da política em Brasília, com todas as suas dificuldades. Sabemos qual é a alternativa.

E, sim, confesso que fiquei emocionado quando Lula recebeu a faixa das mãos de uma mulher negra, que trabalha como catadora. O país em toda a sua diversidade estava ali. E foi a única fez na vida em que fui grato a Jair Bolsonaro. A sua ausência valeu por uma iluminação.

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