Já vivi o bastante, nestes meus 61 anos bem feitos — trocaria por uns 31 malfeitos, mas ninguém topa... —, para cair em conversa de picaretas e para dourar a pílula. Não! É mentira! Jair Bolsonaro não pediu para que os golpistas dessem um fim aos bloqueios de rua. Tampouco admitiu a legitimidade do resultado das eleições. Limitou-se a dizer que a violência não era coisa boa porque, segundo ele, tal prática remeteria às esquerdas. O dia de ontem começou com tias do Zap fazendo orações em pontos de obstrução das vias e terminou com Paulo Guedes no Supremo lastimando a Revolução Francesa. "Não entendi, tio Rei". Não entendeu porque você acha que estou metaforizando. E eu não estou.
Eis aí. Evoco a minha maturidade — ou velhice, em tempos em que a ignorância se farta na sua precocidade — para dizer aos leitores: Bolsonaro nem admitiu a vitória do adversário nem censurou o inconformismo estúpido dos seus aliados. Ao contrário: o biltre o justificou, afirmando que este nasceria da injustiça, como se não tivesse sido ele próprio, Bolsonaro, a jogar a Constituição no lixo quando recorreu à PEC do ICMS e à dos benefícios sociais para tentar ganhar as eleições. Além de outra penca de ilegalidades. E, ainda assim, perdeu.
Bolsonaro nem sequer reconhece a existência de um adversário. Delinquente político que é, demonstrou gratidão aos seus "58 milhões de votos" — na verdade, 58.206.354 —, mas ignorou que seu adversário obteve 60.345.999. E isso significa que aquele cujo nome não pronunciou e cuja existência ignorou obteve 2.139.645 de "sins" a mais do que ele. Para os de sua turma, ele poder dizer sem susto que menos é mais. E seus seguidores acabarão concordando.
Transcrevo a íntegra de sua fala chinfrim:
"Quero começar agradecendo os 58 milhões de brasileiros que votaram em mim no último dia 30 de outubro. Os atuais movimentos populares são fruto de indignação e sentimento de injustiça de como se deu o processo eleitoral.
As manifestações pacíficas sempre serão bem-vindas, mas os nossos métodos não podem ser os da esquerda, que sempre prejudicaram a população, como invasão de propriedades, destruição de patrimônio e cerceamento do direito de ir e vir.
A direita surgiu de verdade em nosso país. Nossa robusta representação no Congresso mostra a força dos nossos valores: Deus, pátria, família e liberdade.
Formamos diversas lideranças pelo Brasil. Nossos sonhos seguem mais vivos do que nunca. Somos pela ordem e pelo progresso. Mesmo enfrentando todo o sistema, superamos uma pandemia e as consequências de uma guerra.
Sempre fui rotulado como antidemocrático e, ao contrário dos meus acusadores, sempre joguei dentro das quatro linhas da Constituição. Nunca falei em controlar ou censurar a mídia e as redes sociais.
Enquanto presidente da República e cidadão, continuarei cumprindo todos os mandamentos da nossa Constituição.
É uma honra ser o líder de milhões de brasileiros que, como eu, defendem a liberdade econômica, a liberdade religiosa, a liberdade de opinião, a honestidade e as cores verde-amarela da nossa bandeira.
Muito obrigado."
Há, por acaso, uma nesga que seja de reconhecimento da legitimidade do adversário e de submissão às instituições? Se alguns ficaram contentes, peço desculpas por ser um tantinho mais exigente e declarar que essa fala é lixo. Na democracia, quem não reconhece o adversário ignora a essência do próprio regime. Com 31 anos malfeitos, talvez eu caísse na conversa. E deixo claro que convivo com pessoa bem mais jovens do que isso, mas com idades bem-feitas, que também não se deixaram engabelar pelo biltre.
É que, na gente, como na música "Rosa dos Ventos", de Chico Buarque, deu o hábito de "De caminhar pelas trevas/ De murmurar entre as pregas/ De tirar leite das pedras/ De ver o tempo correr". Mas eu declaro aqui e em toda parte o fim da era em que somos obrigados a "tirar leite das pedras" para fazer com que o mundo e as pessoas pareçam melhores do que são. Bolsonaro é um homem público desprezível, que representa o que a política produziu de pior. Ainda que se pudesse argumentar que adversários seus aprontaram "poucas e boas", como se diz por aí, não vou condescender com um chefe de estado que fez da morte uma política de estado e que submeteu ao descrédito algumas das boas conquistas da institucionalidade.
Eu sei que muitos esperariam de mim algumas palavras que representassem, como escreveu Guimarães Rosa, "um descanso na loucura". Pois é... "Pô, Reinaldo Azevedo, dê uma folga, deixe que a gente se tranquilize um tantinho... Afinal, olhe como estávamos ontem. Agora, temos um presidente que..."
Que o quê? Que admite que ele está obrigado a seguir as regras do jogo? Lembrando Gregório de Matos, não me peçam para ser grato por aquilo que as instituições me dão por força de sua própria existência, sem depender da vontade do mandatário. As paralisações promovidas pelos inconformados com o resultado das eleições são atos criminosos. E crimes também cometeram aqueles quem as estimularam. Não permitirei que Bolsonaro me imponha a sua derrota! Na verdade, ele nunca soube vencer. E também não sabe perder.
O presidente encerrou a noite de ontem no Supremo. Conversou sobre o Palmeiras e sobre o meu Corinthians com os ministros do tribunal, dando a entender que, por ele, a disputa eleitoral acabou. Não sei se estava em busca de imunidade industriada ou impunidade. Espero que não tenha colhido nem uma coisa nem outra. Tivesse tido 2.139.646 votos a mais do que Lula, sabemos muito bem que tipo de gente levaria para a Corte — contra a democracia.
Guedes chegou um pouco mais tarde ao tribunal. Além de exaltar a sua obra inigualável — e as pessoas têm, claro!, o direito de se fartar com a própria mediocridade —, parece que resolveu "desler" um panfleto genial de Thomas Paine (que ele não citou porque nem deve saber direito do que estava falando). Na toada, aproveitou para criticar a Revolução Francesa, que estaria na origem da Rússia e da China, ou algo assim, colocando a si mesmo como herdeiro do iluminismo inglês, que resultou na América, de cujo pensamento seria um caudatário.
Eis uma bibliografia que, sem dúvida, teve um destino porco nas suas mãos, já que seu líder é aquele que vocifera, em companhia dos fascistas, "Deus, pátria, família, liberdade" — enquanto tenta sabotar as urnas.
Os nossos liberais raramente resistiram à tentação de um chicote. É histórico.
Que os nossos magistrados não permitam que os fascistoides permaneçam impunes em nome da pacificação. Ou os fascistoides lhes arrancarão as respectivas cabeças. E também as nossas.
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